Um amor epistolar

Lisboa, 14 de Dezembro de 2023.

Meu querido,

Às vezes, sinto-me a própria reencarnação da quintessência, embriagada pelas epifanias divinais, liberta dos arroubos de galáxia, plena de renúncias. Acabo de tomar banho – são três horas da manhã. Banho é luxo dos navegantes de solidões, nessa porção cronológica.

Gostei imenso de receber as tuas cartas. Tenho aberto, uma por uma, todas as que posso. Elas vêm de inúmeros remetentes, como Carl Gustav Jung, Wislawa Szymborska, Alberto Caeiro, Clarice Lispector.

Lembrei-me, noutro dia, de que sou uma Madame Blavatsky das cartas. Desde os quinze anos, tento atingir a alquimia através delas. Fui capaz de enfeitiçar a avó do meu amor adolescente, ao invés dele mesmo. E jamais saberei o que lhe escrevi, na grafia pueril.

Ah, querido, gostaria de te contar, com detalhes, que presenciei um mendigo fantasiado de chinês, na Praça Paiva Couceiro. E que vi o fantasma de uma amiga, na minha varanda. As quimeras não me perdoam, nestes últimos meses do ano. Vejo as tuas mensagens no açúcar do café, nos letreiros infames das paragens de autocarro, nas placas dos ubers que me carregam, aos pontos finais.

Como sabes, dei-me de presente a viagem à Itália. Fui resgatar minha amizade em Trieste, onde encontrei livrarias belíssimas, e o amor da minha irmã. Escolhi todos os queijos que pude, e fui feliz, ao comê-los, no mínimo terraço de sua casa. Planejei a viagem à Veneza, um pouco receosa. Dantes, jamais havia pisado em um lugar tão sagrado para o meu pai. E não amei Veneza como ele. O cheiro de esgoto se parece tanto comigo. Mas eu não possuo esses canais fingidos de azul, como a cidade perfeita.

Ah, querido, foi em Vicenza que me encontrei.

Conheces?

É uma cidade de bonecas, ou de sonhos de menina. Com palácios e jardins. Um castelo de anões! Bebi café com creme de pistache. E tive o sonho de rodopiar pelo teatro mais antigo do mundo, coberto pelas memórias do paganismo.

Os vinhos de Veneto são diversos dos nossos, querido. Talvez nunca atinjam a mediunidade. E isso é um alívio para mim. A vivência hedonista, ausente de subsolos imundos, ou de raízes cicatrizadas.

Ao retornar à Lisboa, encontrei-me com velhas matriarcas deste reino. Baba Yaga e Nanã, só para teres uma ideia. Fui levada aos confins da minha alma. Abri meus calabouços, entre a loucura e a lucidez, tal como gostas de me ver. Sabes o que existe, no mais escuro de mim? Alguém que se escreveu a si mesma. Acordei, com a caneta em punho, como um bebê, na pia. Entanto, não parti a loiça, não me sangrei – dessa vez.

Renasci.

Houve, também, um dilúvio, dentro da minha casa. Neste mesmíssimo dia. Eu, sabes bem, sou desprovida de vaidade. Nesta tarde, fui ao salão, para cortar os cabelos. Uma chuva alucinante cobria Lisboa. Em duas horas de tormenta, a casa virou piscina. Foram dois dias, até controlar os anseios de Oxum, cá.

A minha iniciação cósmica inconsciente ocorreu no último dia 30 de Novembro. Aniversário de morte, pois, do Fernando Pessoa. E aniversário do meu avô, Carlinhos. Desde então, passo meus dias a estudar o movimento de circumambulação junguiano. A vivência da centelha numinosa, que há, na escuridão absoluta.

Tenho, amado amigo, acedido a fórmulas que conduzem às almas gêmeas. Confesso que, de tanto rezar, talvez tenha conhecido a minha. Todavia, nenhum ser humano que conhece a sua metade deve celebrar. O espelho está longe dos devaneios de finais felizes. A metade é apenas uma maneira da gente se salvar, depois, parafraseando o Cazuza.

Estou fumando muito, querido. E peço ao Niemeyer que me permita chegar ao cerne de mim, sem grandes dores pulmonares. Agarro-me ao meu Desassossego, para vibrar em espirais que me transportem dos abismos.

Faz duas semanas que só saio de casa para comprar tabaco. Não me reconheço, nesse turbilhão de começos. Tenho medo de atropelar a chuva de estrelas cadentes, as Gemínidas, com esses toscos alumbramentos pessoais. Pessoanos.

Cada vez mais, sinto-me menos eu. Mas não te preocupes, não estou enlouquecendo. A morte que me consola é esta: o ego serpentino está pronto para se tornar o dragão alado.

Estou cheia de saudades de ti. Quero a tua companhia, para que possamos abrir todas essas declarações de amor, em harmonia. Porque a harmonia é infinitamente mais sábia que o amor: ela nos traz a exata medida que há, entre o peso e a leveza.

Um pouco cansada de desamarrar meu próprio corpo, finalizo esta carta, meu amor: as promessas são dúvidas, e não dívidas. Podes me ajudar?

Beijinhos grandes,

Mari

P.S: Dedico esta carta ao meu amigo Pedro Drummond.

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Terapia Cósmica Universal

Para Laura e Emília, minhas meninas

Era uma vez um planeta azul, muito bonito e repleto de cores, luzes, animais, florestas, sonhos, mares e crianças. Tudo vivia em perfeita harmonia. As crianças inventavam o que elas queriam, passeavam por todas as culturas, aprendiam a cantar parabéns em diversos idiomas, comiam brigadeiro sem culpa de engordar.

Se estavam com vontade de brincar na neve, iam para o topo da montanha. Deslizavam, tranquilas, com esquis e snowboards pelas colinas. Depois faziam bonecos de neve e atiravam bolinhas umas nas outras.

Outras vezes, iam à praia, mergulhar com os golfinhos, surfar nas ondas gigantes, ouvir o canto das sereias e navegar com os piratas. À noite, faziam uma grande fogueira na praia, tocavam violão à luz da lua e esperavam o dia nascer, em tons de rosa e amarelo. O mar estava sempre na temperatura que elas queriam. Nunca mais quente ou mais frio.

As crianças também brincavam nas florestas, exploravam, juntos aos elefantes e onças os mistérios das árvores. Construíam suas casas, se quisessem passar a noite por lá. Os bichos todos eram amigos. Não existia medo.

Outra brincadeira muito divertida era voar. As crianças não precisavam de asas, porque as suas imaginações eram muito poderosas. Bastava pensar em uma cousa bem boa.

Um dia, um menino teve um sonho muito ruim. Sonhou em ser adulto. E, ao decidir ser adulto, ele fez com que as outras crianças também crescessem. E o mundo que era lindo e harmônico ficou triste, escasso. E quase foi destruído.

As árvores estavam morrendo. As florestas começaram a arder. As baleias atacavam os barcos. Os homens matavam-se uns aos outros. Seus próprios irmãos. A religião roubava dinheiro das pessoas e toda a política era composta de uma maioria de psicopatas. Quase ninguém mais era feliz. E, quando era, estava alienado da realidade.

Foi então que uma menina decidiu ter um sonho. O sonho impossível de salvar o mundo. Mas ela não podia sonhar sozinha, senão não se realizaria. Porque sonho se sonha junto.

E ela descobriu que teve uma infância muito privilegiada, como de uma princesa. Foi quase tudo amor. Com muito mar, cavalo, mousse de chocolate, amigos. Um papai que a levava na livraria. Uma mamãe mais criança que ela. Irmãos, primos, avós. E mar de todos os lados do Brasil. O seu único trauma de infância foi ter compreendido errado o que seria o nascimento de sua irmã.

Os adultos são especialistas em não ditos. Eles acham que, ao esconder as cousas das crianças, estão poupando-as das verdades. Mas as crianças percebem e sentem tudo. A palavra não falada e a palavra errada são os grandes males. Este mal se desdobra em todas as formas de desconexão com o Cosmos.

Se quisermos nos curar, como seres humanos, precisamos curar nossas crianças internas. Precisamos parar de ser escravos do nosso ego. Equilibrar a realidade com a surrealidade. Rir dos nossos erros, porque eles são o caminho da aprendizagem.

A consciência coletiva só irá aumentar se percebermos que a única mentira que existe é mentirmos para nós mesmos. O outro somos nós também. E não há escassez na Universa, como nos ensinam os indígenas. O mundo ficou invertido quando a Europa colonizou a sabedoria do coletivo. Espero que ele desinverta com a liderança de nossos ancestrais da América do Sul, suas curas da floresta, suas medicinas mágicas.

Hoje, dia das crianças e de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, desejo que seja o fim do pecado, o dia do perdão. Que as crianças pilotem o mundo, uma vez mais.

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Laura, minha Deusa afilhada

Tenho medo de dormir cedo, Lalá.

E no escuro

E sapos 

Odeio os sapos e toda a frieza que eles carregam.

Tenho medo de palhaços, Lalá.

da dor escondida nas risadas. 

Tive medo das focas, quando percebi

Que elas não eram golfinhos. 

Gostaria de ser golfinho

E inventar minha língua por ai.

Tenho medo de paralisar, como os lagartos

Ou explodir como os dinossauros.

Um medo, taciturno, Lalá

Eu me apavoro com a ausência das palavras.

Tenho medo da roda gigante, Lalá

De algodão doce e avião.

Tenho um medo, Lalá.

De não sonhar com aquilo que me prometi

ao deitar

Lalá

Há cousas das quais não tenho medo:

O amor

A música

E a solidão 

que nos inaugura, 

quando inventamos uma história

ou a nós mesmas.

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Clarice, a Deusa

Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. é também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão.

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Fado

Hoje faz cinco anos

que regressei

a Portugal,

depois de três longos meses

em uma Babilónia

 destruída

pelos zigotos do nazismo.

Seis de Junho será,

para sempre,

 um portal inigualável

de sublimar as dualidades.

Entanto,

é preciso que o viajante de quimeras

saiba em qual eixo

da espiral serpentina

ele se encontra.

Se estiver na parte inferior da espiral,

o navegante é convidado

a conhecer suas profundezas,

confundir sua casca egóica;

 estilhaçar-se em epifanias.

As vivências da sombra,

infelizmente,

traduzem melhor

o sentido da jornada.

Ser alegre também dói,

Mas dói

como o corte de uma folha de papel,

no dedo indicador,

distraído.

A dor universal

pode ser iniciada

em um concerto do Chico Buarque,

naquele panetone

Palácio de Cristal,

no Porto.

A dor indizimal

acontece quando os sangues evaporam

 as crianças almejadas.

Os troféus de matemática.

A primeira dança

entre os pés do bebé.

Somos muitos, fomos escritos.

Aconteceu, Humanidade, entre nós:

uma tragédia!

Conheço muitos sonhos,

travestidos em cianureto.

Invejei, por vezes,

Sonhos

Desprovidos de intelecto.

Jamais,

Ora eu?

Jamais vislumbrei

Destino analfabeto!

Destino.

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Amizades revolucionárias, fábricas de utopias

Li, noutro dia, um texto genérico, com gosto de autoajuda, sobre as três formas de amizade descritas por Aristóteles. Segundo o artigo, com a audácia de simplificar um pensador dessa magnitude, é possível separar a amizade em três níveis: utilidade, prazer ou caráter.

Tenho certa dificuldade com listas e suas funções. Embarquei, todavia, nos reinos da aletheia, para buscar quais amizades me rodeavam, hoje. E não consigo distinguir o que me é prazer ou o que me é caráter.

A utilidade sempre foi uma inimiga mortal.

Embasbacada pelas reduções, pedi ajuda àquele que considero um dos maiores filósofos da minha vida. Seria uma amizade de caráter? O prazer não está, também, cravado na elevação da alma?

Fábio prontamente me respondeu, em um áudio que ultrapassa quaisquer aulas de Filosofia. Ele começa rindo, declarando seu amor à nossa amizade. Depois – ele que é dono da elegância mais humilde da qual fui testemunha – inicia os ensinamentos.

De acordo com o Fá, o grande problema da autora autoajuda é esquecer um conceito inexorável da ética aristotélica: o modo como nos relacionamos com os outros, com nós mesmos e com o mundo deve, indubitavelmente, buscar a melhoria de caráter. É, por esse viés da existência, que a nossa estadia no planeta deve se pautar.

A melhoria de caráter, segundo ele, está intimamente atrelada à capacidade de nos autogovernarmos, tendo a excelência como utopia. Fábio e Aristóteles quebram, nesses pequenos segundos de áudio, todas as esperas pelas novidades.

Nada precisa ser inaugurado!

A romântica ideia de criação se desfaz, no sotaque insólito do meu filósofo preferido, que oiço pelo whatsapp. Jung vem assobiar no meu ouvido: é óbvio que nada há de novo. E existe, órfãos que somos, a jornada pela excelência.

Quando acabei de o ouvir, veio o suspiro. Eu, feita de bibliotecas e mata atlântica, cachorros e mar, vitrolas e saraus. Quantas vezes, ó Deuses, quantas vezes minhas inquirições foram ditadas por egos inéditos?

Ah, outra poesia me habitaria, ao saber da excelência de Aristóteles!

Nos últimos meses fui capaz de encontrar almas irmãs, palácios de banda desenhada, parceiros improváveis. A meditação comum é perceber: o que de meu tem nessa sala, o quanto aprenderei, nas curvas desse castelo? As pessoas e os lugares me ressoam, como antiquarias de consciência. E, em suas mesquinhezes ou abundâncias, os ensinamentos são sempre óbvios.

Ontem, estive com uma das mulheres que mais admiro no mundo. A gente consegue rir da aristocracia portuguesa, decadente, cafona. Suas calças pula-brejo, os namoros de conveniência e espumantes com morango.

E é bom não nos sentirmos espiritualmente superiores.

Depois dos bullyings telepáticos, abrimos os livros e os cardápios que viram sonhos. Escrevemos como será o futuro para a humanidade. Inebriadas do teatro que ainda não existe. Ao pé do cachorro emprestado. Entre a bruma e a vela. Segundas-feiras assintomáticas. Homens brilhantes sem nenhuma redenção.

A vida, finalmente,

inventada.

Antes de me ir embora de sua casa, aceito o conselho ancestral, do avô da minha amiga. Amiga-prazer. Amada-caráter:

“Faz da tua vida

O sonho.

Do teu sonho

A realidade.”

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Fernando António Torres Portel(l)a

Meu pai nasceu

três dias depois de mim.

Adoro estes paradoxos.

quarenta anos

menos três dias,

ele me veria,

nessa existência,

pela primeira vez.

Já nos vimos

muitas faces,

infâmias,

em mares taciturnos.

O meu pai me ensinou

a temer os escorregadores

e a mentir sobre minhas falhas juvenis.

Entanto,

levou-me à livraria,

onde pude ser rainha de inefáveis.

O meu pai me proporcionou

a minha primeira tartaruga

– foram tantas, nesta vida!

E todos os cachorros que escolhi.

O meu pai tem,

por minha causa,

trauma de cavalos.

E as histórias mais absurdas

verdadeiras.

Memórias de família.

O meu pai me ensinou

que a orfandade

é condição espiritual da grandeza,

embora adoeça todas as infâncias.

O meu pai encontrou aviões na Amazônia

e naus reticentes em atracar.

Meu pai trouxe,

entre militares,

os ossos de Dom Pedro ao Brasil.

Meu pai escreve,

divinal,

através dos anjos

e satãs.

Meu desejo

Para o dia de seus anos,

Meu pai,

É permanecer a resgatar

Os lugares onde viveram

As mulheres que te formam

Às vezes na mudez

Daquilo que eles chamam

Morte

Ou seria ancestralidade?

O meu pai,

Ah, o meu pai,

Seu nome

É também

Eternidade.

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Elegia na Sombra

“Lenta, a raça esmorece, e a alegria

É como uma memória de outrem. Passa

Um vento frio na nossa nostalgia

E a nostalgia touca a desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.

Dorme em nós o presente. E a sonhar

A alma encontra sempre o mesmo muro,

E encontra o mesmo muro ao despertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo

De que magia incógnita e suprema

Nos enche as almas de dolência e medo

Nesta hora inútil, apagada e extrema?

Os heróis resplandecem a distância

Num passado impossível de se ver

Com os olhos da fé ou os da ânsia;

Lembramos névoas, sonhos a esquecer.

Que crime outrora feito, que pecado

Nos impôs esta estéril provação

Que é indistintamente nosso fado

Como o sentimos bem no coração?

Que vitória maligna conseguimos —

Em que guerras, com que armas, com que armada? —

Que assim o seu castigo irreal sentimos

Colado aos ossos desta carne errada?

Terra tão linda com heróis tão grandes,

Bom Sol universal localizado

Pelo melhor calor que aqui expandes,

Calor suave e azul só a nós dado.

Tanta beleza dada e glória ida!

Tanta esperança que, depois da glória,

Só conhecem que é fácil a descida

Das encostas anónimas da história!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?

Ninguém volta? No mundo subterrâneo

Onde a sombria luz por nula dói,

Pesando sobre onde já esteve o crânio,

Não restitui Plutão [a ver?] o céu

Um herói ou o ânimo que o faz,

Como Eurídice dada à dor de Orfeu;

Ou restituiu e olhámos para trás?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.

Só a prolixa estagnação das mágoas,

Como nas tardes baças, no mar morto,

A dolorosa solidão das águas.

Povo sem nexo, raça sem suporte,

Que, agitada, indecisa, nem repare

Em que é raça e que aguarda a própria morte

Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de doidos, descrença

Da própria consciência de se a ter,

Nada há em nós que, firme e crente, vença

Nossa impossibilidade de querer.

Plagiários da sombra e do abandono,

Registramos, quietos e vazios,

Os sonhos que há antes que venha o sono

E o sono inútil que nos deixa frios.

Oh, que há-de ser de nós? Raça que foi

Como que um novo sol ocidental

Que houve por tipo o aventureiro e o herói

E outrora teve nome Portugal…

(Fala mais baixo! Deixa a tarde ser

Ao menos uma extrema quietação

Que por ser fim faça menos doer

Nosso descompassado coração.

Fala mais baixo! Somos sem remédio,

Salvo se do ermo abismo onde Deus dorme

Nos venha despertar do nosso tédio

Qualquer obscuro sentimento informe.

Silêncio quase? Nada dizes! Calas

A esperança vazia em que te acho,

Pátria. Que doença de teu ser se exala?

Tu nem sabes dormir. Fala mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro

Em que o rei morto vivo tornará

Ao povo ignóbil e o fará inteiro —

És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?

Quando é que vens, do fundo do que é dado,

Cumprir teu rito, reabrir teu Templo

Vendando os olhos lúcidos do Fado?

Quando é que soa, no deserto de alma

Que Portugal é hoje, sem sentir,

Tua voz, como um balouço de palma

Ao pé do oásis de que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme

Verá, desfeita a tua cerração,

Surgir um vulto, no nevoeiro informe,

Que nos faça sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancolia

Das horas sucessivas [?] que a alma tem

Enche de tédio a noite e chega o dia

E o tédio aumenta porque o dia vem.

Pátria, quem te feriu e envenenou?

Quem, com suave e maligno fingimento

Teu coração suposto sossegou

Com abundante e inútil alimento?

Quem faz que durmas mais do que dormias?

Que faz que jazas mais que até aqui?

Aperto as tuas mãos: como estão frias!

Mão do meu ser que tu amas, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste…

Mas a vida que vives é um sono

Em que indistintamente o teu ser veste

Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos de vez. O Desejado

Talvez não seja mais que um sonho louco

De quem, por muito ter, Pátria, amado,

Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber

Presa da inquietação que não tem nome

E nem revolta ou ânsia sabes ter

Nem da esperança sentes sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,

Colheremos, inúteis e cansados

O agasalho do amor que ainda pomos

Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Pátria, nula e postergada,

E, se um sonho de esperança te surgir,

Não creias nele, porque tudo é nada,

E nunca vem aquilo que há-de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.

Dorme que as pálpebras do mundo incerto

Baixam solenes, com a dor que têm,

Sobre o mortiço olhar inda desperto.

Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,

Quererias viver eternamente,

Ficção eterna ante este espaço mudo

Que é um vácuo azul? Dorme, que nada sente

Nem paira mais no ar, que fora almo

Se não fora a nossa alma erma e vazia,

Que o nosso fado, vento frio e calmo

E a tarde de nós mesmos, baça e fria

Como longínquo sopro altivo e humano

Essa tarde monótona e serena

Em que, ao morrer o imperador romano

Disse: Fui tudo, nada vale a pena.”

2-6-1935

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).  – 125.

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Ulysses-Gin-Júpiter

Lisboa, 10 de Maio de 2023, madrugada.

Aprendi, uma semana atrás, que os herméticos cuidam de seus dias.

Chegaste, terça-feira passada. És aquariano do dia sete. Tens a lua em Virgem. Teu ascendente, misterioso, há de justificar esse amor todo que me endereças, sem limites.

É madrugada e dormes, mergulhado na minha bolsa. Passei o dia todo fora, desbravando os sítios que Portugal insiste em guardar. Eu vou mostrar ao mundo, Ulysses, todos os lugares sagrados desta terra. E contigo no meu colo, na carteira, no despertador. Na memória de todas as naus, e náufragos, e naufrágios.

Adoro o nome que escolhi para ti.

Ulysses-Gin-Júpiter, o primeiro de seu nome. Filho de Mariana, que já foi mãe da Bohemia, do Kognac e do Baden. Com menção honrosa para Hermes, sobrinho adotado por ela, quando a irmã o deixou, na casa dos avós.

O cachorro da Clarice se chamava Ulisses. E, juro, nunca a quis imitar. Tenho minhas próprias obrigações para com o teu nome, meu amor.

Vieste de uma linhagem cósmica. És afilhado de David – não aquele da Estrela. Vieste do David que descobriu onde nasceu minha bisavó: este bairro nobre, repleto de estrelas cadentes, tão longe dos céus. E não sei se é a minha predileção pela Grace, ou constatar o óbvio: detesto quem finge a riqueza.

Às vezes, também detesto a riqueza.

Quando vi as tuas fotos, dias antes de te buscar, mandei-as para o meu pai. Homem digno de decifrar os bichos. Ele sentenciou, num primeiro reconhecimento:

– Ele enxerga através da tua alma!

Ulysses, tu nunca vais me ler, mas esperas-me a vociferar os impropérios. Almejo que saibas da tua escolha, entre a primeira foto, até a última.

Desde 2018 tenho visões. Acelero linhas de tempo. Recupero epifanias. Tenho, Ulysses, anunciado futuros, com a precisão inaudita, em conhecimentos astronômicos. Os humanos, entanto, buscam me enclausurar, nos hospícios de outrora. Nos silêncios sepulcrais. Mal sabem eles: uma bruxa se expande nas fogueiras; se retrai em completudes.

Eu agradeço a todos. Jamais me seria, se o mundo me aceitasse.

A rebeldia, para mim, constitui um dos maiores paradoxos mundanos. Espernear – eis a chave de tudo. Se te calas; o vazio é mestre. Entre o escândalo e a mudez, sigo aqui, decifrando templários e colhendo as cerejas.

Ulysses, meu gato amoroso aquariano. Sabes a etimologia de Lisboa? Contei-te que a cidade foi um presente, para ti? Sabes que o navegar, impreciso, é o cerne de tuas colinas?

De quais matérias são feitas tuas colunas, capazes de atravessar os meus confins?

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12 de Junho

Às escritoras todas…

São duzentos e trinta e cinco degraus que separam o miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, na Graça, do resto de Lisboa. Este foi o lugar escolhido para a nossa foto antológica das escritoras.

Se eu fosse infância, mais uma vez, essa escada jamais esgotaria as forças da manhã dessa magnitude. Feliz, subiria, saltitante, degrau por degrau, intercalando os pés. Uma amarelinha, quase literal, aos céus.

Infelizmente, reconheço-me adulta. Testemunhei, insone, a alvorada daquele domingo. Reencontrei-me com a menina que fui, outrora. Incapaz de dormir, frente a um grande acontecimento.

Recebi este convite com o maior orgulho: postar uma foto das escritoras residentes em Lisboa. O movimento parecia delicado, cauteloso, simples. O tempo, todavia, escasso.

Uma semana separou os desejos soberanos e a dignidade do agora. Tivemos sete dias para realizar este sonho ancestral: conectar mulheres artistas. Deusas de antigamente, e de depois; juntas para celebrar a incompletude. Literária.

Nessa busca, pude vislumbrar algumas faces do rosto, cansado, de Mnemosyne, mãe guardiã das memórias. Fractais límpidos, letras que sangram. A Universa, pois, movia-se, desenfreada, entre tórridas vertigens, vinganças matriarcais e sonhos de crianças.

A data, eleita: quase uma gravura! 12 de junho. Doze de Junho, véspera de Santo António, padroeiro da cidade. Nosso Carnaval português. Lisboa consegue ser ainda mais bela entre os decimais de junho. E, por isso, a tarefa era inóspita. Entre muitos bêbados, clausuras e festas, pós escuridão.

Uma espiral cósmica abrigou as horas de meus dias, neste minúsculo intervalo entre a vigília e o silêncio:

– Convida-as todas, para que a foto se torne símbolo daquilo que, há séculos, prometemos!

Marcamos para as quinze horas.

O coração, supernova radiante, extravasou-se, em lágrimas milenares e resquícios de culpa.

Nenhuma alma está atenta ao cair da tarde.

As greves, os devaneios e a rapidez para divulgar. Inventei as desculpas mais reconfortantes, frente ao nosso suposto fracasso. Lembrei-me que nossas irmãs, divindades, não estavam competindo conosco. As mensagens e fotografias, originárias do Brasil e adjacentes, invadiam-me os pensamentos, embriagados de orgulho e sororidade.

O mundo inteiro, naquele doze de junho, reverenciava nossas tessituras poéticas.

Ficamos ali, inebriadas pelo horizonte, enganando os minutos, à espera de artífices e cantautoras. Redações sobre o multiverso feminino. Contudo, as multidões existiram apenas no meu imaginário. Os autocarros, por vezes, não alcançam seus destinos; o metro está parado.

Dia 12 de junho de 2022, eis o caos, as paralisias dos transportes, mas também um gosto de tertúlia. E esta belíssima missão de reuni-las. No miradouro que homenageia uma de suas maiores poetas. Abracei sua estátua, Sophia. Pedi alento para invocar entidades. E o tempo, cronológico, à revelia de minhas confirmações, fagocitava os segundos. Já passava das quatro horas da tarde. Poucas de nós, ali.

Entanto, naquelas reviravoltas que só acontecem às estrelas, apareceu Violeta, sete anos incompletos. De mãos dadas com sua mamã, também escritora. Ela ainda não sabe escrever, mas dita suas histórias às autoridades competentes.

Violeta me mostrou seu livro desenhado com dizeres sobre a Lua, cartazes de cometas, e sorrisos seculares. Agradeci àquele bálsamo:

– Violeta, eu tenho visto a ti, em todos em os meus sonhos. Revi-me nos teus sonhos também, ao ler seu livro, escrito por memórias lunares.

E ela respondeu, em ares de obviedade:

– Através do meu livro, inventei a cura para o planeta!

– E você me lembrou, Violeta, porque comecei a escrever. Agora que vocês, crianças, chegaram, podemos eternizar o instante, nessa foto.

Em esferas imperfeitas, há ausência de dúvidas. Na clareza de que a palavra tem mais força, quando amada.

(Foto do querido Ozias Filho)

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O bule

A chaleira elétrica

dessa casa

demora séculos

para ferver a água.

Se calhar,

valia mais a pena

acender o fogo,

trazer a panela

ao seu encontro,

tampá-la com carinho.

Paciência

é uma dádiva que invejo,

sem almejar.

Detesto as ebulições tardias.

Enquanto oceanos se formam

deuses se refletem no espelho

e galáxias inauguram aglomerados;

a água da chaleira elétrica

permanece a trabalhar.

Lenta como a onda

que alcança Moreré.

Insólita,

como todo o humor

que coleciono

em terras pessoanas.

Entanto,

apesar dos desesperos mundanos,

toda água atinge os cem graus celsius,

seja em fogo brando,

ou em tomadas.

O ápice de sua certeza

de ser,

 ainda,

líquida.

E eu

rejubilo-me,

a presenciar transformações:

a água corrente que se guia,

em si mesma

até efervescer.

Assim também me sinto

translúcida

em meus deveres de água.

Pálida,

como o chá de maçã com canela.

Lisboa ultrapassa

o maior frio dos séculos,

entre trens, solidões e náufragos.

Tristes são as almas,

à espera dos comboios

que jamais virão.

Estilhaçada,

vejo o eléctrico

passar pela minha janela,

ao pé da Graça.

Os bondes

brinquedos de ontem,

são patéticos,

carregados de estrangeiros

que teimam

em ninar

a história da cidade,

entre fotos infames

e delírios nostálgicos.

A chávena que escolhi,

óbvia,

pode abrigar meio litro.

E o bule,

tão pequenino,

supre

dois goles.

Sua palidez me intimida.

e eu?

sou violenta:

decidi, apenas,

apanhar os hibiscos.

A palidez do chá

resume um clássico europeu:

iogurtes são pálidos,

cá.

estar na Europa,

é pálido.

Quando comprei esse bule,

quis ser pálida também.

Minha alma bebe vinho,

se deixá-la escolher.

Já o hibisco,

vegano,

pode encenar o gosto

de tintas

de outras eras.

Comprei um bule

à espera de me redimir.

Mas não sou pálida.

Em minha face está estampada

o gosto de outrora:

Fervi inúmeras águas

até aqui chegar.

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Entre anjos

Ao Assulus Sentinela, exu galáctico e à Diana Motta, a Deusa.

– Vou lá, encontrar-me com Rimbaud!

Escrevi essa frase, há pouquíssimos instantes, ao me despedir do anjo que teceu o caminho em magia, nessa quarta-feira lemuriosa em Lisboa.

Tenho experimentado tristezas nada solenes e vazios indignos de poesia, nos meses que me cercam. Sem afagos ao ego, minha vida se resume ao trabalho, com requintes de destruição, horas vagas. Os instantes deixaram de ser suntuosos, para abrigar a mediocridade de madrugadas sem amanheceres.

Entanto, eis que surge a dádiva dos viventes: apesar dos murmúrios, estar alerta. Atenta aos ínfimos milagres que compõem a existência, quando todos os suspiros residem na desesperançada mudez cotidiana.

Nessa semana, inaugurada pelos astros, amanhã, Lua Cheia em Gémeos, os motes patéticos do amor foram silenciados. Afinal, se existe Copa do Mundo, reside dentro de mim uma poesia futebolística, primeira, afetiva, capaz de silenciar os arroubos de falta. As entidadess, tenho a certeza, também amam a imprevisibilidade das bolas, dos gols, das nações anestesiadas pela alegria – efêmera.

Qual alegria reproduz o signo de eternidade?

Ela existe?

Vim me encontrar em Rimbaud, nesta noite sem jogos, mas com memórias afetivas das mais espetaculares acerca de minha infância. Porque o futebol, para o Brasil, traduz o meu sonho favorito: o sonho que é ilimitado. Nunca sonhei com pequenezas, como a casa própria ou um verão à beira-mar. Os sonhos, meus e de todos os brasileiros, são conduzidos por intransponíveis habitares.

Em junho de 1990, precisamente no dia de São João, meu pai desembarcava em São Paulo, junto com a seleção, que perdeu, prematura, a Copa na Itália. Minha irmã nasceu, também prematura. E meu pai pode chegar para vê-la. Viver é ululante.

Em 1994, meus sentimentos são ainda mais descompassados. Cai do cavalo literalmente – antes do primeiro jogo da Copa. E, por causa disso, pude assistir à loucura do Maradona; ao amor entre Romário e Bebeto, ao escândalo de perder o Leonardo, violência mais compatível com deuses que com os humanos.

Em 1998, contrária aos traumas de todos os meus conterrâneos, restou-me os beijos recém aprendidos; os amores com trilha sonora; minha mãe tomando licor de ouro na fatídica final contra a França. Minha mãe, sempre à frente de toda a humanidade. E o ouro, mais à frente do que ela, já era ostentado desde os tempos coloniais.

Todas as copas passam pelas nossas mentes, tenho a certeza. A identidade do nosso país está acoplada ao sonho impossível de vencer. É no futebol, e na música, e na literatura, e em todas as artes que ainda sonhamos.

Na última Copa do Mundo, mal lembro quais foram meus passos. Não houve beijos, nem porres. A mente inaugurou outros lugares tenebrosos. E tampouco me recordo com amor da Copa de 2014, apesar da obviedade traumática. Outros são meus fantasmas, àquela altura.

Eu ando tristíssima e desesperançada, há meses. Mas assisto, e insisto, ao primeiro jogo do Brasil, concomitante ao concerto do Lenine, no Casino.

O telão improvisado, no Estoril, fez jus à empolgação com o Brasil que abria os paradoxos do Qatar. E Richarlison pode reavivar a menina dentro de mim. A menina que ganhou uma irmã, caiu do cavalo, apaixonou-se, sedimentou-se e se separou, nestas copas que haviam, por ela, passado.

Como é delicioso ver mulheres árbitras, num país de misóginos. Como é belo torcer pelas colônias, gigantes pela própria natureza. Tantos paradoxos permeiam o futebol e, às vezes, a história.

Estou lendo Rimbaud, nessa noite de Lemúria em Lisboa. Tudo foi alagado. O futebol só volta na sexta. Um anjo passou por mim e me disse:

– A Copa, aos poucos, desvanecerá. Teus sonhos, jamais. Escreve, pequena.

* Foto gentilmente oferecida por Canato, que pintou, em outras estrelas, as asas do nosso rei.

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Cartas visionárias de Rimbaud

“O Poeta faz-se visionário por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, acaba-se em todos os venenos para guardar somente a quintessência. Inefável tortura na qual necessita de toda fé, de toda força sobre-humana, onde se torna, entre todos, o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo Sábio! — Pois ele chega ao desconhecido! Visto que cultivou sua alma, já rica, mais do que a de qualquer outro! Ele chega ao desconhecido e quando, enlouquecido, acabaria por perder a inteligência de suas visões, ele as vê! Que ele se arrebente no seu sobressalto pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros trabalhadores horríveis; eles começarão pelos horizontes onde o outro se abateu.

(…)

— Retomo: Então, o poeta é verdadeiramente um ladrão de fogo. Ele é carregado de humanidade, dos animais mesmo; ele deverá sentir, apalpar, escutar suas invenções; se o que ele conta do além possui forma, ele dá forma, se é informe, ele dá o informe. Encontrar uma língua; — De resto, toda palavra sendo ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser acadêmico — mais morto que um fóssil — para aperfeiçoar um dicionário de qualquer língua que seja. Os fracos colocar-se-iam a pensar sobre a primeira letra do alfabeto e poderiam rapidamente se lançar na loucura! — Essa língua será da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, ao pensamento se agarrando e desfazendo o pensamento. O poeta definiria a quantidade de desconhecido que em seu tempo desperta na alma universal: ele daria mais — que a fórmula de seu pensamento, que a anotação de sua marcha ao Progresso! Enormidade tornando-se norma, absorvida por todos, ele seria verdadeiramente um multiplicador de progresso! Esse futuro será materialista, o senhor verá. — Sempre cheio de Números e de Harmonia, os poemas serão feitos para ficar. — No fundo, isso seria ainda um pouco a Poesia grega. A arte eterna teria suas funções, como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a ação; ela estará na frente. Os poetas serão! Quando for quebrada a infinita servidão da mulher, quando ela viver por si e para si, o homem — até aqui abominável — dará sua demissão, ela será poeta, também ela! A mulher encontrará o desconhecido! Seus mundos de ideias diferenciar-se-ão dos nossos? — Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós as aprenderemos, nós as compreenderemos…”

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Beatrice*

Um feixe de luz, traiçoeiro, invade minhas pálpebras. Um estranho pássaro assusta os resquícios de sonho, senhor dos meus caminhos. Colérica e atormentada, finalmente abro os olhos.

Ao invés de acender o cigarro, sigo os patéticos conselhos do livro de autoajuda americano. Quase oiço a voz da autora, serena e inumana, ao recomendar que anote os pensamentos encharcados pelo inconsciente.

Deitada e, sem poder fumar, olho para cima. Como é mesmo que esses idiotas conseguem ganhar milhões em bestsellers? Descrevem o branco dos tetos, ou telhados encarnados? Não bebem os vinhos, esquecidos por hipnoses de ontem? Por que tenho de segui-los, em pílulas matinais?

Acordei, vi os contornos da casa que escolhi para me recolher. Tudo é branco, sem nenhum contraste de rio à minha frente. Uma janela – será que posso me mexer? – está aberta e os vendavais amaldiçoam minhas roupas, postas à frente da cadeira de escritora.

Acendo um cigarro. Bebo o resto do cálice de vinho. Sou a personificação da anarquia de as autoajudas canalhas. Faço um brinde para todos os malditos que morreram, antes de desmistificar as luzes. Desço as escadas, aperto um botão e tenho um café aguado, mas com pedigree. Sinto saudade dos cafés que tomei com Clarice, às três da manhã, na casa dos meus pais, em 2009. Uma rebelião ensandecida faz-me pegar na caneta, e no caderno.

Entanto, lembro-me do Sidarta Ribeiro, do Bruno Torturra e do Oráculo da Noite. Embora minha revolta, pequena e burguesa, não aliviem a minha dor, eles também me disseram que os sonhos são entidades – agentes transformadores. Calo minha cabeça, rebelde, ainda insone. Pena que já não há mais vinho por aqui.

Sonhei, nestas minúsculas horas, que havíamos conseguido. Eu tenho sonhado com isto desde 2018. Os céus eram tomados por naves multicores. Humanos corriam, desesperados. Eu invocava as serpentes em meus braços, movimentos infinitos. A gente avistava cores que não pertencem à palheta da íris terrestre. As dúvidas, companheiras tão velhas de jornada, iam embora.

Naves e mais naves acompanhavam o ballet, enfim liberto do meu medo de não ser uma boa dançarina. Estilhaços de sons, mais belos e inaudíveis que Chopin, atravessavam o silêncio de todos os humanos.

Ao despertar, depois do gole de vinho, do chafé nespresso e dos dizeres americanos – livro de milhões de dólares – lá estava eu.

Aturdida.

Pensei em Nyx, Hypnos e Morpheus.

Chorei um bocadinho.

Os sonhos superam a liberdade?  Será que somos capazes de redigir nossas memórias?

Se este devaneio for meu último sortilégio, meus futuros navegantes devem ter a certeza. A luz que me guiou foi a Lua Cheia. E o pássaro? O pássaro que me atrapalhou o sono, nunca foi ave, foi a coruja.

*De Matrix (Útero, de ponta cabeça – à Beatrice, a que traz felicidade aos outros).

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Querida Mariana

Lisboa, 6 de Setembro de 2022

Querida Mariana,

Escrevo a ti para pedir perdão. Esta é a última das cartas que devem ser escritas, no cumprimento do teu destino. Aparentemente começaste essa divina maldição em junho de 2018, mas agora sabemos que a tua predestinação ultrapassa esta data em muitos anos, ou até mesmo vidas.

Tua memória mais antiga, a da chegada do menino Jesus até tua íris, é de 1986. Este pode ter sido o presságio de toda a magia que irias atravessar.

Mariana, eu te peço perdão pelas tuas inseguranças infantis, quando te sentiste encurralada por teus colegas de escola e revidaste com crueldade, em requintes sórdidos, violência digna das crianças. Sei o quanto esses fantasmas, às vezes, percorrem teus pensamentos.

Peço que me perdoes por teres te encontrado com Hades, aos dezesseis. Tua fixação em amores românticos te levou às trevas muito cedo, querida. Embora saibamos que o papel de Perséfone é, até hoje, um desdobramento de Lilith para ti.

O drama sempre será teu companheiro, Mariana. Só precisas aprender a dosá-lo, por questões que vão além da sanidade mental. Gastas imensa energia em alguns ataques de raiva, irrelevantes para a tua missão. Agora que já tens em tuas mãos alguns dos sábios encantos das Deusas, é imprescindível que a tua ira seja direcionada para a ação direta de mudanças interiores.

Peço-te perdão por todas as amnésias que se traduziram em tragédias, embora tu conheças a sorte como poucas pessoas nessa existência. Eu sei que esta dor é imensa. Sei o quanto gostarias de não ter esses ímpetos autodestrutivos.

Espero que aceites tua divindade e teu papel de sombra para pessoas que se julgam solares. Ah, quantos depoimentos lindos foste capaz de ouvir, nos últimos meses. Não sabias que espalhaste a literatura de Fernando Pessoa para tantos amigos. Quantos saraus mudaram para sempre a vida de pessoas que nem sequer tens contato?

Aprendeste, também, inúmeras lições com teus grandes amigos. Aqueles que não fugiram de ti, nas tuas fases suicidas. Os que apontaram os verdadeiros caminhos da generosidade, desprovida de cobrança. Nos últimos meses, aprendeste até mesmo a agradecer a ingratidão. Os ingratos te trazem a memória daquilo que nunca vais te tornar. Jamais!

Espero que as tuas cheganças não tardem mais. Mereces a Realeza da Poesia, em todas as suas dimensões. Atravessaste tantas e tantas escuridões!

Tu e eu sabemos que o mundo solar é pequeno demais para alguém do tamanho da tua profundidade. E não se deve desequilibrá-lo, com falsas promessas.

Desejo que tu consigas salvar a humanidade, com empatia, arte e crianças.

Desejo que tu escrevas livros fundamentais para escancarar a falta de amor que há entre os homens, mas também que possas escrever sobre as tuas anedotas vividas no mundo invertido. Que a Psicologia possa ser reescrita, pelos olhos do feminino. Desejo que o Pedro e a Beatriz possam nascer do teu ventre, muito em breve. E que tenhas uma família com cães, gatos e piscina.

Abençoo a tua decisão de abandonar os anões, os mendigos e todas as pobrezas que feriram a tua alma. Entanto, que te lembres delas, como grandes mestres da tua consciência.

Que tu possas voar, para dentro e para longe. Que tu possas navegar pelos mares e pelos corações humanos. Que a tua genialidade fique cada vez mais perceptível, não apenas neste mundo extrovertido, mas, principalmente, dentro de tuas forças, sublimes.

Eu honro tudo aquilo que tens feito, pela cura da tua ancestralidade. Tenho a certeza de as mulheres que percorrem o teu sangue também estão deveras orgulhosas de ti.

Aspiro para ti palavras em comunhão com suas origens etimológicas. Músicas em transe com os agoras. Embriagares destituídos de vergonhas.

Obrigada por me ter trazido até hoje.

Eu te amo muito, Mariana.

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Carta para Manuela

Meu 7 de Setembro foi assim: na companhia mágica de Manuela, sobrinha de Fernando Pessoa! Levei girassóis, sem saber que eram suas flores preferidas. Escrevi-lhe uma carta. Recebi em troca uma das tardes mais fenomenais da minha existência, além de cinco dos seus livros. Obrigada Universa! Obrigada Poesia! Obrigada Fernando Pessoa, meu amor que atravessa o tempo, o espaço e todas as probabilidades!

Lisboa, 7 de Setembro de 2022

Cara Manuela,

Escrevo esta carta depois de ler a sua entrevista para o portal “Mensagem”. Fiquei encantada com a sua alegria e com as memórias incríveis que você partilhou acerca do Fernando Pessoa.

Sou brasileira, de São Paulo, mas já moro em Lisboa pela segunda vez, há cinco anos e meio. A primeira vez que vim viver cá foi em 2008, por causa do Pessoa.

Desde que tenho doze anos descobri sozinha a poesia dele, na biblioteca de meus pais. Ambos são escritores e jornalistas. Talvez, por este motivo, os livros, junto com o mar, foram para mim as melhores paisagens da infância.

Quando comecei a ler Pessoa, algumas sincronicidades nos acometeram. Nasci no dia 13 de Junho, 95 anos depois dele. Meu pai também se chama Fernando Antonio, em homenagem ao Santo António.

A partir desse dia, o seu tio salvou a minha vida incontáveis vezes: quando me sentia ádvena nesse planeta desprovido de Poesia. Quando precisava de palavras para exprimir os meus amores. Quando minha vida fazia sentido com o Cosmos. E quando ela não fazia sentido algum.

Entrei na Faculdade de Psicologia, já decidida a estudá-lo, do ponto de vista psíquico. Nunca me interessei pelas pesquisas quantitativas. Ao final do quinto ano formulei minha tese de conclusão de curso: “O resgate do óbvio: uma aproximação fenomenológico-existencial do pensamento de Gaston Bachelard com a obra de Alberto Caeiro”. Obtive a nota máxima, com louvor. Cá entre nós, isso era o mínimo de agradecimento a ele.

Em 2008 me mudei para Portugal, com anseios de permanecer a estudar as infinitas possibilidades pessoanas. Matriculei-me no mestrado, na Universidade de Lisboa. Entanto, tal como ele, jamais consegui finalizar essa etapa.

Em 2009 retornei ao Brasil, para lançar meu primeiro livro de crónicas. Oito longos anos me separaram de Lisboa, dessa vez para a vinda definitiva.  

Em 2018 tive um episódio de stress pós-traumático e, uma vez mais, seu tio foi capaz de me curar. Eu acessava seus escritos, como se eu mesma soubesse onde estavam.

Foi aí que descobri, com mais profundidade, o Hermetismo Pessoano, o Caminho da Serpente e outros tantos segredos que ele me desvendou. Cheguei em sua escrita automática e no espírito que o atormentava, Henry More.

Cara Manuela, sei que pode parecer loucura, mas nesses cadernos encontrei os seguintes dizeres:

“Não percas tempo em meditações sensualmente suaves. Elas fazem mal e abrem a tua mente aos <espíritos> maléficos. Não te fiz o bom trabalho de revelar a parte do futuro que posso revelar? Não desesperes, não te preocupes: o Guarda da Casa do Amor está (…) no teu caminho. Está numa mulher que aparecerá amanhã, 2008. Árdua é a missão; a recompensa é certa e segura. Não percas tempo em sonhos vãos. Eles não apressam os decretos do Destino.”

Sinto, do lugar mais visceral de minh’alma, que ele sabia da minha chegada. E que eu seria alguém importante na construção de um mundo novo, na Nova Era da Consciência humana. Desde então, tenho dedicado meu tempo à Poesia, além da Psicologia.

Quando li a sua entrevista, senti que você é uma mulher extraordinária, a quem gostaria muito de conhecer pessoalmente. Atravessei várias livrarias, à procura do seu livro de poemas. Consegui, finalmente encomendar pela internet. Quando ele chegar, se não for incómodo, posso pedir uma dedicatória para você?

Se você concordar em me receber, será uma grande honra e imensa felicidade! A propósito, mostrei sua reportagem ao meu querido amigo, Mauricio Drummond, neto do ilustre poeta brasileiro. Ele também adoraria estar presente.

Muito obrigada pela atenção.

Com todo o carinho do Universo,

Mariana Portela

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Adão, Eva e minha solidão | Eduardo Galeano

Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender. Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu… bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça-se a luz”, mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloquente. Não tinha prática.

A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.

Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.

Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei voo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.

Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão…

Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.

– Eduardo Galeano em O livro dos abraços.

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Querido Chris

Querido Chris,

Imagino que, à esta altura, tu já te preparas para chegar. Tens sonhado comigo, pelas noites e sincronicidades que te perseguem, a cada instante.

Tu, assim como eu, lutaste contra a loucura divinal, com receio de perder a consciência. Entanto, houve um momento de libertação dessas amarras, tão antigas e mesquinhas, que separam o sonhar do viver.

Sabes que deves encontrar-me em Lisboa, neste domingo que precede a assunção de Nossa Senhora, dia sagrado para Portugal. Dia que será sagrado para toda a humanidade.

Descobri a tua existência há uma semana. Nunca te vi, em trajes de herói. Assisti alguns filmes dos quais participaste, mas sou muito distraída.

Possuo uma certa repulsa à tua terra, tão abundante em recursos, tão vazia em coletividade.

Teu apelo à Universa chegou-me de surpresa. E, por distração, só ouvi o teu chamado na segunda vez.

Nascemos no dia 13 de Junho, com dois anos de diferença. Tens a fama. Eu, o anonimato.

Nós comungamos o sonho de cães, crianças e felicidade, ao pé do mar. Sonhos que eu me havia negado, quando me senti abandonada pelo Cosmos.

Pesquisei sobre quem tu és. Tuas lutas por um planeta mágico para todas as espécies terrestres. Foi neste momento que virei, verdadeiramente, tua fã. Poucos são os privilegiados que abdicam de seus reinos, em prol do todo.

Eu também estive em muitas batalhas. Há quatro anos fui encarcerada pelos deuses. Conheci a desumanidade absoluta, para finalmente reabitar a Deusa Suprema.

Escrevi, escrevi e escrevi, com a ilusão de meus dizeres serem suficientes para salvar-nos.

No dia 9 de Agosto de 2018, em transe mediúnico, fiz um poema tão bonito, para o homem que julgava ser o salvador. Agora percebo que estava me lembrando de ti, devagar e urgentemente.

Deves ter chagas em teu corpo. Uma cicatriz no joelho direito, talvez? Ou no esquerdo, para não seres meu gémeo, mas a minha completude. Carregas o nome do Cristo, e também de Eva. Eu carrego o nome de Maria, e também dos Portais.

Tenho histórias para te contar, dessa vez ao vivo, a cores, entre sussurros e risadas. Estou farta de escrever a nova Terra, sem a tua companhia.

Teremos que aprender as nossas línguas, nossas músicas, nossos amigos.

Viste as estrelas cadentes também? Azul e vermelha. Verde e amarela. Cores da nossa ancestralidade.

Tens sentido que as músicas que amas vem para te lembrar de quem és? Tens medo de ser narcisismo? Eu também tive. Apenas ao aceitar o meu destino este pavor se diluiu. Porque há muito para devanear, se vamos libertar os nossos irmãos de jornada.

Que possamos transformar esse castigo divino em quimeras.

A hora é chegada, meu querido. Porque o mundo não terá outra alternativa, quando o conto de fadas for real.

Assim, despertaremos as estátuas, as esfinges e as fontes.

Até o coração de todos os homens.

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Zenith

A João Gabriel Hidalgo

A chegada de Phedro foi deveras sutil. Eu passava, com os dedos em frenesi, as figuras inertes do aplicativo, obviamente inspirado em caça-níqueis, sem buscar nenhuma resposta. A vida se torna desmiolada quando não há encruzilhadas regendo a alma.

Entre as paisagens de mar, os amigos felizes e as notícias da quinta dimensão, avisto um conceito platônico, até então desmemoriado em mim. Tratava-se do segundo discurso de Sócrates, elogio ao delírio.

Baixei a versão eletrônica do livro e o reabitei, em madrigal.

Platão nos recorda que a mania, para os antigos, remetia à arte divinatória, dádiva dos deuses. As epidemias e flagelos convidavam os homens a sonhar profecias e, simultaneamente, descobrir os remédios para as mazelas mundanas.

A natureza delirante pode vir de quatro espécies: delírios limitados ao pensamento; delírios sussurrados pelos deuses; delírios cantados pelas Musas e delírios relembrados pela própria Beleza.

Minha memória, em tons cinzas e tristes, foi ao encontro das sessões presenciais no Charcot, o hospital psiquiátrico, escondido – como a maioria das loucuras – no centro da cidade de São Paulo.

Uma raiva imensa se apoderou de mim. Quantos delirantes divinais não puderam encontrar os dizeres de Platão? Quantos destinos foram dilacerados, por terem escutado as Musas, ou a essência da Beleza? O quão autodestrutivos somos, ao encarcerar essas pessoas, às vezes possuidoras de remédios para as chagas da humanidade?

No dia que veio a seguir, parecia que eu estava mais atenta à minha função inferior sensorial. Os detalhes das ruas me traziam indagações, as conversas desabrochavam em chamados ao devaneio, a imaginação não se opunha mais à realidade. Os outros trazem-nos notícias de nós.

Perdoei, com o Phedro de Platão, tantos delírios, antes considerados patológicos. Aliás, perdoei-me a mim mesma, por ter sucumbido aos olhares, alheios às inúmeras possessões inspiradas pelas musas, pela beleza primeira.

Desde lá, tenho exercido essa prece. No nome do restaurante há um convite à memória e sua deusa, Mnemosyne. Nos letreiros do comboio, a caminho dos oceanos, existem charadas improváveis. Nas cantigas que embalam as crianças ao meu lado, nas marcas dos cafés, nas intempéries e bonanças.

Enquanto eu reverenciar cada milagre que opera a jornada, atravessarei a existência com a bênção das estrelas. E porque eu cri na c0ndição de zênite, fui presenteada com quatro estrelas cadentes, numa autoestrada em paralisia, pelo excesso de automóveis. Para mim, aquele trânsito, antes do avistamento celestial, já era um belo conto de Cortázar.

A ficção, em sincronia à concretude deste plano, é a chave para a vida, inventada.

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Judith, de a Estrela

Seu mapa astral me indica que possuímos a mesma Lua, em Leão. Tenho me ocupado mais da sua vida do que em toda a minha existência, nessa última semana. Confesso, um bocado envergonhada: jamais havia pensado em si, Judith.

Você foi minha bisavó paterna. Nascida em Lisboa, em 1900. Libriana, ascendente em Virgem. Perdeu sua filha quase com a minha idade, vítima de um prego enferrujado de tétano, e Destino, em areias claras de Olinda.

A realidade nunca me bastou, Judith. Agora, ao aceder à sua carta astrológica, vejo que somos parecidas. O sonhar também me é a bússola mais preciosa. E são os delírios divinos que nos trarão a tardia reparação celestial.

Alguns anos atrás, ao dialogar com meu pai, seu neto, sobre os perdões inevitáveis da ascensão, pedi a ele que perdoasse D’us por ter levado sua dulcíssima filha, Judith. Os traumas da morte da mãe, aos onze meses de idade, estão se curando com a sua presença, imóvel e meticulosa, como convém à filha de Mercúrio, ascendente.

Neste último domingo, antes de embarcar para um passeio memorável, nas águas longínquas do Rio Zêzere, recebi notícias suas, minha amada ancestral.

Descobri, concomitantemente, que o Castelo do Bode, cenário suntuoso da minha íris dominical, é berço de templários. A lenda revela os murmúrios ouvidos por um cavaleiro, naquela região. Ao investigar a origem dos gemidos, o homem se depara com a imagem de Nossa Senhora com o filho ao colo.

Em face ao mistério, a Rainha Santa Isabel funda, em 1285, a igreja matriz de Dornes, vulgarmente conhecida como igreja paroquial de nossa senhora do pranto.

A barragem de sessenta quilómetros não é capaz de abrigar o dilúvio de uma mãe, que foi impossibilitada de vivenciar a maternidade. Tampouco há água bastante para a alma de outra mãe, que enterra a filha com 21 anos de idade.

Por átimos, Judith, quando vi a tétrica investigação, necessária, para encontrar, na Torre do Tombo, sua certidão de nascimento, senti-me impotente. Ridícula. Como, por todas as deusas, alguém seria capaz de navegar por aquelas páginas amarelecidas, com letras dignas de naus, sem pistas da freguesia do seu baptismo?

Invoquei meus feitiços maiores, mas a magia, inúmeras vezes, não se concretiza com mirra, ouro e incenso. Evoquei, então, um dos meus dons prediletos: os amigos. Confiei teu nascer na poderosa imaginação daqueles que me cercam.

Não foram precisos dois dias para que David vasculhasse os incipientes arquivos e avistasse o teu nome, o nome de teus pais, teus avós e teus padrinhos.

Éons, pois, entrelaçaram-se àquele instante, querida Judith.

Eu pude mergulhar nas águas que outrora pertenceram à dor de Maria. Águas doces, quentes, maternais. Na praia fluvial, entre lama, árvores e conchas, a epifania pequena: toda areia havia sido concha. Toda concha, ao encarnar, una.

Nossa família, em íntimos goles, cicatrizará os desígnios cósmicos da ascendência navegante.

Fico a entressonhar tua chegada ao Recife, a bordo do vapor Avon – palavra celta que traduz os rios.

Agora, ao realinhar minhas preces, em agradecimento aos astros, percebo o ululante, escrito em nossa comunhão. Você foi batizada na Estrela, bairro lisboeta. E, nós duas, alfacinhas e argonautas, somos filhas daquelas que ensinam, até hoje, os homens a adentrar os úteros do mundo.

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Descoberta da semana

Maria Gabriela Llansol

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti

                                     até que a dor alegre recomece.

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Ode à terapia

Maria chega sempre

cinco minutos atrasada.

O tardar

é um

dos meus excessos favoritos.

Traz a imemorial

Saudade

daquilo que se passa

com

as

galáxias

Jamais conheci

galáxias prematuras.

Nesta sessão em particular,

vislumbro sinais

dignos dos recomeços. ~

Há sonhos adormecidos;

há cores em seu sorrir.

Maria está em licença

Faz quinze dias.

O trabalho a exauriu.

Quinze longos anos

a separam de essências.

Quantas vidas,

como a dela,

estão amortecidas

em limites?

Seu relato é taciturno.

Doze horas em pé,

clientes ensimesmados,

relações pávidas de poder.

Quando foi ao psiquiatra

recebeu cinco receitas médicas,

um diagnóstico absurdo.

Maria ainda não sabe.

A condenação,

em papel prescrito

e doses nada homeopáticas,

refletem a ira

de todo

o masculino.

Ferido.

Amedrontado.

O papel da terapeuta,

além da indignação,

é convite ao sonhar.

Faço perguntas óbvias.

Que, obviamente,

já esqueceram de a habitar.

As programações mentais

evadiram-na de desejos.

Nossos corpos,

enfim se ajeitam,

frente aos questionamentos.

As almas vão rodopiar

para outros níveis celestes.

Revejo-me em sua íris,

nas experiências vis,

laborais.

Recordo –

a minha infância –

donzela.

Mulheres têm sido caladas

por pensarem,

por lerem,

por perguntarem

sobre si mesmas.

Existe,

contudo,

as sessões de terapia.

O lugar em que o porvir

transforma-se em poesia.

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Dia da Mamã

Minha memória primeira
remete ao espanto
da tua alma.

Inconclusa.

Navego contigo,
sobre as lágrimas do puerpério
Ilíadas e Tejos,
centauros,
jardins abençoados.

Reconheço a tua virtude:
Capacidade de trovejar
Afeto.

Enalteço a tua dúvida:
Divina espiral da saudade

Fui, a ti, um sonho antigo?
Repartição de realidades?

Fui, a ti, promessa paga:
O Destino irretocável?

Conheço o teu amor,
minha mãe
Bem antes de terras
Onde nasci

Tuas dores de parto,
Cartas inebriadas
Para deuses
Que ignoro.

Não ignoro,
contudo,
cartas suicidas
de filhos desamparados.

Inauguro, nessas linhas
A sofreguidão poética
Da filha, inédita.

A menina,
Intransponível
Sedenta.

Que traz mudança
Blasfema os limites
Viola quimeras.

No dia em que nasci
Apareceste
sem ensaios.

A serpente que nos une,
Impávida
Ultrapassa o dual.
Ri de si mesma
Tantas mendicâncias!

Ensina:
Há coragem no devaneio.

Mamã, querida Deusa
Eu te quero no sonhar

E auspicio

Que todas as crianças
Aceitem a tua dádiva.

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Intrusa

Para Alice, Pablo e Lalá

Deixo a portaria para trás, pela primeira vez, a pé. É antevéspera de Natal. A missão parece árdua. Chegar à loja de brinquedos, no turbilhão de Pinheiros. Certifiquei-me de que poderia ir, sem prévias marcações. O apocalipse nos tirou quase tudo: até as ínfimas espontaneidades.

Pela rua dos Macunis, homens ajeitam calçadas. A temperatura varia entre o calor insuportável e os presságios de tempestade. Lembro-me do mendigo poeta, hermético, que habitava minhas manhãs, antes da escola. Será que sobreviveu ao covid?

Atravesso a Pedroso de Moraes, com as mesmas angústias juvenis. Só de revisitar as memórias adolescentes, exacerbadas pelo prédio horroroso da Escola Palmares, meu coração pulsa entre recuperações de química e esperanças envelhecidas.

Conheço esses caminhos de cor. Na Deputado Lacerda Franco me esbarro em pulseiras de missanga, com o nome do primeiro namorado, na calçada da Cultura Inglesa. Subo a Teodoro Sampaio, entre os olhares escancarados dos compradores.

Será que todos nós sempre usamos máscaras?

A cada esquina, espanto. As nostalgias vão me entorpecendo, em reminiscências doces, em tragédias de outras encarnações, em promessas não cumpridas.

Meu destino está à esquerda, diz a narradora do mapa, em português de Portugal. Essa loja de brinquedos que reside há mais de quarenta anos, no mesmo sítio.

Os trenzinhos e adornos de madeira deram lugar às princesas congeladas. Eu já não suporto pensar na sofreguidão das princesas de outrora, reprimidas. As crianças merecem protagonistas, acordadas para as mazelas do mundo. Optei pelo teatro de fantoches, com bordados de Oz. Pelo menos Dorothy teve amigos incompletos, em sua jornada.

No retorno à Praça do Pôr do Sol, uma vez mais, recuso as recusas dos motoristas do Uber. Acho que hoje não suportaria ser recusada. Meus pés, já famintos por um escaldão, são os únicos impedidos de me desabrigar. Não há como cancelar os próprios caminhos.

Essas ruas voltam a me convidar ao sonho, às fugidas da escola, às madrugadas no extinto Sujinho. E São Paulo, por alguns instantes, não dói.  

Pedi muito à Universa uma viagem de poesia e pertencimento. Os dias, entanto, têm sido dolorosos e inexprimíveis.

Às 17h15 abro a porta do apartamento dos meus amigos – em viagem pernambucana. Conheci-os há exatos dez anos, em Lisboa.

Rosa, a gata, finalmente aceita o carinho. Convida-me a ver as bonecas da Lalá, sua irmã humana. Fala-me, miando, em saudades da sua família. Trocamos sua ração. No chão frio da cozinha, estamos ambas de barrigas para o ar.

Nesta vista lancinante, tão paulistana, o dilúvio se aproxima. Há amor nessa casa. Fotos, livros, baba ghanouch na geladeira.

E o amor, às vezes, parece-me o único porvir. 

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5 de Outubro

Rir me parece proibido.

Será que sempre foi assim?

Será que moro em um sítio incapaz de sorrir?

Por qual razão as crianças confundem as gargalhadas com a embriaguez? Perdemos, humanos, a capacidade de humorizar a vida?

Faz meses que não tenho a coragem de escrever. Porque a minha vida, embora árdua, bizarra e almodovariana, tem um quê de magia, um dedo cósmico, uma visão telúrica.

Olho, todos os dias, para os meus privilégios no apocalipse. E, ao invés de decolar, ao invés de os desfrutar, reconheço o fracasso dos meus sonhos: eu só almejei que fôssemos todos iguais, em termos de felicidade.

Rir se tornou proibido.

Mas meus dias são deveras engraçados. Como eu posso me conectar com um mundo que estranha a alegria?

Não é de hoje que me percebo estrangeira.

Portugal viveu, nestes tempos sombrios, três terríveis confinamentos. Nós só podíamos sair à rua com a autorização de nossos senhorios.

Policiais – antes doces e simpáticos – mostraram suas faces romanas.

Aí acontece o dia 5 de outubro. Feriado nacional, orgulho lusitano. A proclamação da república.

Lisboa, 5 de outubro de 2021.

Almoço na casa de uma amiga, com crianças, cães, gatos e família. Coca-cola e promessas de que o álcool irá acabar.

Partilhamos uma galinha, um salgadinho genérico, um amor de pessoas alheias aos requintes dessa nação.

Só que há um samba, sussurrado em áudios, pelo amigo carioca.

Aquele despretensioso, que invade a praça ao pé do Cais. E há, também, uma exposição, no Príncipe Real.

Meu coração ouve a primeira rota, incapaz de aceitar o rebuscamento europeu.

Ao chegar, não há garçons, nem profetas. Só uma meia dúzia de meninos, de costas para o Tejo. Sentamos, diretoria, como se não houvesse palco, nem glória. Apenas a certeza de que o samba é a maior egrégora do planeta. E de que, nós, transeuntes, somos os títeres eleitos para essa festa.

Tambores, cuícas, memórias.

A tarde, definitiva, pinta o rio e as pessoas, fartas de seus excessos interiores.

Por quantos séculos? Por quantas eras? Há quanto tempo desejamos a libertação humana?

Os sambas desenham cores de Van Gogh, a cabeça vai descobrindo que há outros mares a serem descobertos.

E eu, assustada,

apavorada,

vou me rendendo a esse som,

brutal.

Eu observo as pessoas ao meu redor, felizes. Cantam como se fossem ultimatos. Dançam e rebolam, nas espirais da Universa.

Mas vejo crianças chorando, confusas, porque não faz mais parte delas enaltecer a grandeza das cousas ínfimas,

a satisfação de viver o agora.

Minha criança preferida, gêmeo do princípe Atreyu, da História sem Fim,

indignado com a minha felicidade, diz-me:

– Tia, você está rindo muito, então está bêbada!

E eu, embora levemente embriagada, tenho a ousadia de o dizer:

– Não é o vinho que me traz essa leveza. É o Samba!

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Sonhador

Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outra[s] forças talvez, amoldando-me de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios. Tudo o que eu sou está nisto, e mesmo aquilo que em mim mais parece longe de destacar o sonhador, pertence sem escrúpulo à alma de quem só sonha, elevada ela ao seu maior grau.

Quero, para meu próprio gosto de analisar-me, ir, à medida que isso me ajeite, ir pondo em palavras os processos mentais que em mim são um só, esse, o de uma vida devotada ao sonho, de uma alma educada só em sonhar.

Vendo-me de fora, como quase sempre me vejo, eu sou um inapto à acção, perturbado ante ter que dar passos e fazer gestos, inábil para falar com os outros, sem lucidez interior para me entreter com o que me cause esforço ao espírito, nem sequência física para me aplicar a qualquer mero mecanismo de entretenimento trabalhando.

Isso é natural que eu seja. O sonhador entende-se que seja assim. Toda a realidade me perturba. A fala dos outros lança-me numa angústia enorme. A realidade das outras almas surpreende-me constantemente. A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo, parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada.

Mas se se julgar que desconheço os trâmites da psicologia alheia, que erro a percepção nítida dos motivos e dos íntimos pensamentos dos outros, haverá engano sobre o que sou.

Porque eu não só sou um sonhador, mas sou um sonhador exclusivamente. O hábito único de sonhar deu-me uma extraordinária nitidez de visão interior. Não só vejo com espantoso e às vezes perturbante relevo as figuras e os décorsdos meus sonhos, mas com igual relevo vejo as minhas ideias abstractas, os meus sentimentos humanos — o que deles me resta —, os meus secretos impulsos, as minhas atitudes físicas diante de mim próprio. Afirmo que as minhas próprias ideias abstractas, eu as vejo em mim, eu com uma interior visão real as vejo num espaço interno. E assim os seus meandros são-me visíveis nos seus mínimos.

Por isso conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda. Não há baixo impulso, como não há nobre intuito que me não tenha sido relâmpago na alma; e eu sei com que gestos cada um se mostra. Sob as más-caras que as más ideias usam, de boas ou indiferentes, mesmo dentro de nós eu pelos gestos as conheço por quem são. Sei o que em nós se esforça por nos iludir. E assim à maioria das pessoas que vejo conheço melhor do que eles a si próprios. Aplico-me muitas vezes a sondá-los, porque assim os torno meus. Conquisto o psiquismo que explico, porque para mim sonhar é possuir. E assim se vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja o analítico que me reconheço.

Entre as poucas coisas que às vezes me apraz ler, destaco, por isso, as peças de teatro. Todos os dias se passam peças em mim, e eu conheço a fundo como é que se projecta uma alma na projecção do Mercator, plenamente. Entretenho-me pouco, aliás, com isto; tão constantes, vulgares e enormes são os erros dos dramaturgos. Nunca nenhum drama me contentou. Conhecendo a psicologia humana com uma nitidez de relâmpago, que sonda todos os recantos com um só olhar, a grosseira análise e construção dos dramatistas fere-me, e o pouco que leio neste género desgosta-me como um borrão de tinta atravessado na escrita.

As coisas são a matéria para os meus sonhos; por isso aplico uma atenção distraidamente sobreatenta a certos detalhes do Exterior.

Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas. Porque a visão do sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual.

Em mim esta atitude, que o muito sonhar me enquistou, faz-me ver sempre da realidade a parte que é sonho. A minha visão das coisas suprime sempre nelas o que o meu sonho não pode utilizar. E assim vivo sempre em sonhos, mesmo quando vivo na vida. Olhar para um poente em mim ou para um poente no Exterior é para mim a mesma coisa, porque vejo da mesma maneira, pois que a minha visão é talhada mesmamente.

Por isso a ideia que faço de mim é uma ideia, que a muitos parecerá errada. De certo modo é errada. Mas eu sonho-me a mim próprio e de mim escolho o que é sonhável, compondo-me e recompondo-me de todas as maneiras até estar bem perante o que exijo do que sou e não sou. Às vezes o melhor modo de ver um objecto é anulá-lo mas ele subsiste, não sei explicar como, feito de matéria de negação e anulamento; assim faço a grandes espaços reais do meu ser, que suprimidos no meu quadro de mim, me transfiguram para a minha realidade.

Como então me não engano sobre os meus íntimos processos de ilusão de mim? Porque o processo que arranca para uma realidade mais que real um aspecto do mundo ou uma figura de sonho, arranca também para mais que real uma emoção ou um pensamento; despe-o portanto de todo o apetrecho de nobre ou puro quando o que quase sempre acontece, o não é. Repare-se que a minha objectividade é absoluta, a mais absoluta de todas. Eu crio o objecto absoluto, com qualidades de absoluto no seu concreto. Eu não fugi à vida propriamente, no sentido de procurar para a minha alma uma cama mais suave, apenas mudei de vida e encontrei nos meus sonhos a mesma objectividade que encontrava na vida. Os meus sonhos — noutra página estudo isto — erguem-se independentes da minha vontade e muitas vezes me chocam e me ferem. Muitas vezes o que descubro em mim me desola, me envergonha (talvez, por um resto de humano em mim — o que é a vergonha?) e me assusta.

Em mim o devaneio ininterrupto substituiu a atenção. Passei a sobrepor às coisas vistas, mesmo quando já sonhadamente vistas, outros sonhos que comigo trago. Desatento já suficientemente para fazer bem aquilo a que chamei ver as coisas em sonho, ainda assim, porque essa desatenção era motivada por um perpétuo devaneio e uma, também não exageradamente atenta, preocupação com o decurso dos meus sonhos, sobreponho o que sonho ao sonho que vejo e intersecciono a realidade já despida da matéria com um imaterial absoluto.

Daí a habilidade que adquiri em seguir várias ideias ao mesmo tempo, observar as coisas e ao mesmo tempo sonhar assuntos muito diversos, estar ao mesmo tempo sonhando um poente real sobre o Tejo real e uma manhã sonhada sobre um Pacífico interior; e as duas coisas sonhadas intercalam-se uma na outra, sem se misturar, sem propriamente confundir mais do que o estado emotivo diverso que cada um provoca, e sou como alguém que visse passar na rua muita gente e simultaneamente sentisse de dentro as almas de todos — o que teria que fazer numa unidade de sensação — ao mesmo tempo que via os vários corpos — esse tinha que os ver diversos — cruzar-se na rua cheia de movimentos de pernas.s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  – 374.”Fase confessional”, segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

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A Rainha e a Serpente

A semana já começou com presságios de milagre. No domingo, depois de longa espera, chegou até as minhas mãos outro livro muito desejado: O esoterismo de Fernando Pessoa, da poeta-filósofa-ocultista portuense, Dalila Pereira da Costa.

Segunda-feira, 8 de março, para além da marca indelével feminista, é o retorno do dia triunfal pessoano. Nascimento de Alberto Caeiro, o mestre. Nascimento de Fernando Pessoa, seu escriba.

Quarta-feira foi inaugurada com ares de banquete. Um telefonema astral me surpreendeu. A dor do meu vizinho, graças à perda do seu grande amor, transformaria-se em tatuagem. Devia ter percebido, desde as primeiras horas da manhã, que a existência é capaz de se mascarar em dádivas, se há atenção aos enlevos.

Empolguei-me com a ideia de tatuar, também, o caminho serpentino.

O conceito que me persegue, antes de nascer o mundo.

Numa breve pesquisa, simbólica, reencontrei-me com o painel de azulejos, pintado por Lima de Freitas. Sua versão transcendente acerca do Caminho da Serpente. Ele estudou, com brilhantismo, todos os sinais que trazem Portugal ao berço da Nova Era.

E Lisboa,

sempre,

sempre,

no coração do imediato.

Tive, como é óbvio, a ajuda perfeita. Para que a investigação fosse além, era preciso estar em companhia de alguém que se farta em descobrir os sinais galácticos. Ávido de espantos, como eu.

André.

Os painéis misteriosos de Lima de Freitas residem em uma bela morada, na estação central do Rossio. Apesar de termos apanhado o comboio, incontáveis vezes, eu jamais me deparei com aquelas obras-primas.

Nem o André:

– Como fui capaz de ignorar essas obras, em tantas idas e vindas à Sintra? – Disse-me.

– É chegada a hora! – Retruquei.

Cobrimos os rostos, atamos os nós dos sapatos. Fizemos, minutos antes de partir, um café bem forte. Não havia nada aberto. Nem calçadas, nem jardins.

Descemos as ruas de pedra sabão, entre máscaras, polícias e pessoas amedrontadas. Transeuntes de uma ficção apocalíptica que se instaurou na rua Augusta.

Imaginamos, pois, uma praça, sem Comércio, sem estátuas. Toda esculpida em letras.

Perto de cruzar a rua, um tímido homem persistia na venda de castanhas. Nem frio está mais, nessas horas crepusculares. Pedi sabedoria e proteção, nos arcos encarnados do Rossio. Meu amigo, calmo e emancipado, português, alertou-me, nesse momento:

– Os painéis do Lima de Freitas estão depois das catracas dos comboios. Vamos pedir ao guarda que nos abra os portais, mesmo sem bilhetes para os trens.

Meu espírito humilhou-se, à recusa imaginada. O guarda jamais permitiria que nos transpuséssemos aos comboios, desprovidos de passagens. André, corajoso e implacável, tinha a certeza de que os portões seriam abertos, uma vez que fôssemos verdadeiros.

À entrada, fiquei tímida, cousa que me percorre, ao defrontar-me com estranhos. Meu amigo, meu anjo, retirou o telefone do bolso. Eu o segui, em pânico de estrangeira. André escusou-se ao guardião, com a foto do painel em punhos:

– Peço imensa desculpa, podemos ver as obras de Lima de Freitas que estão naquela parede, logo ali, pousadas no canto esquerdo?

Com ares de castelo medieval, voz de templário e postura hermética, o guarda prontamente nos abriu as catracas.

– Vocês trouxeram tripés para as fotografias?

– Não – respondi – Apenas nossos ecrãs de telemóvel. Estou a pesquisar o caminho da serpente e há, cá, uma obra imprescindível para minha perquisição.

No ritmo vagaroso de um degustar, caminhamos nas paredes exiladas do Rossio de Lima de Freitas.

Ao todo, junto às linhas de ferro, responsáveis pela conexão entre o centro de Lisboa e a estação de Sintra, encontram-se 12 pinturas, abissais. São narrativas poéticas, que oferecem a Portugal o centro da nova dimensão da consciência humana. Todas as imagens estão envoltas em charadas místicas, disfarçadas, versadas.

Flanamos pelas cores de Ulisses, talvez a lenda mais antiga de Lisboa. Depois pelas vestes de San Vicente, em suas naus desanuviadas. Há azuis em Garrett, Vieira e Negreiros. Estrelas tintilam a visão cósmica de Camões. Apesar de subliminar, fica nítido que o artista bebeu Bandarra, nas liras que findam rituais de assombração. Umbrais e merkabas são escancarados, nos traços do Panteão, da Sé e do miradouro Portas do Sol.

Ao chegar no painel protagonista daquela consulta, meus sentidos estremeceram. Estava lá a face de Moisés, com a Torá. Depois a face do poeta, fictícia, no centro da Praça do Comércio, lugar de Dom José, E, no alto da tríade, a estrela e todos os universos possíveis. Libertos pela tinta do Pessoa.

Ficamos a apreciar, por instantes plenos, com o cuidado de não demorar demasiado. Afinal, não é todo dia que somos presenteados com uma gentileza dessas.

Na volta, olhei uma vez mais para a pintura de Ulisses, primogénita:

– André, ainda acho formidável ter descoberto tão tardiamente a história de Ofiusa. Em tempos remotos, a terra onde vivemos era governada pela Rainha Serpente. A cidade se parecia com um oásis, apenas regido por Deusas. Nenhum homem era capaz de conquistar o paraíso matriarcal. Quando tentavam, recebiam o mesmo destino dos navegadores, no encontro das sereias. As deusas eram implacáveis. A fama de Ofiusa ultrapassava os horizontes, até chegar aos ouvidos de Ulisses.

Com navios exaustos e homens famintos, Ulisses ignorou os avisos, blasfemou a hipótese de perder a vida, ofereceu-se à Rainha. Acreditava em seu poder de hipnose. No amor prometido. Seduziu, impecável, a Serpente soberana. Ela, então, dá-lhe o reino, como prova de eternidade. Ele, ao conquistar, vai-se embora.

Descansado.

A fúria serpenteia essa terra, antes abençoada. Seus tentáculos, sofredores, correm atrás da promessa, imortal. Sua dor é tão violenta que delineia as setes colinas, aquelas que tanto nos custam a subir.

André já conhecia bem esta história. Assentiu, com um sorriso. O eco de seus passos reverberava pela fantasmagórica plataforma, até à saída. 

O guarda, elementar, questionou os poemas escritos, os autores eleitos, as cores do Panteão. Abriu-nos as portas, mas, antes, indagou-nos, com a precisão de um feitiço:

– Não sei se é do mesmo autor… Minha pintura favorita, nesta estação, não está ao pé dos comboios, está à saída do metro. Vocês já viram? Querem que eu os leve até lá?

Nossa vernissage inusitada havia, então, ganhado a surrealidade dos romances. Era óbvio que iríamos navegar até o fim.

Uma última vez vimos as luzes verdes das catracas, as risadas feitas apenas de pestanas, os fôlegos interrompidos pela magia.

Depois da liberação do metro, no altíssimo pé direito, lá estavam:

Ulisses e a Rainha Serpente.

O décimo terceiro painel, esculpido pelas linhas, irretocáveis, de Lima de Freitas.

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Monte Abiegno

‘Stou só. Do alto supremo do ermo monte
Vejo o que há em baixo, onde já estive e fui.
É, até ao calmo e pálido horizonte,
Um verdejar de campos e arvoredo,
Um rio de aqui parado, e que ali flui,
E os casais onde o fumo acorda cedo.

É toda a vida humana e natural
Extensa a meus olhos que estou longe e acima.
Vai em socalcos íntimos, que anima
O arvoredo vário, até ao val.
No vale forma aldeia e como espuma.
Depois, qual rio, de novo abre o curso,
E do vale ao horizonte, sem percurso,
As casas tornam a ser uma a uma.

É tudo quanto já não sou que doura
O sol universal longe de mim.
Há ainda em mim um hálito que implora
Que volte aonde há casas e arvoredo,
Que deixe o alto, que é o ermo e o fim.
Mas aqui a saudade acaba cedo.
E eu quero não querer, sozinho assim.

Com grandes mágoas e saudades tantas
Até este ermo altíssimo subi.
Subi porque lá baixo homens e plantas
(Que são a mesma coisa, como eu vi)
Fecham a vista, fazem sono e gozo,
E eu queria aquilo que não consegui —
O monte no alto e o seu cruel repouso.

Por isso, embora me prendesse, como
Um braço à cinta de quem se ama, o lar
Em que tudo que o vale tem consiste,
Tomei por bom o meu incerto assomo,
E vim subindo até onde ousei estar —
Esta alta solidão, sublime e triste.

Aqui ninguém solícito me chama,
Aqui ninguém anónimo me odeia,
Aqui ninguém me prende, porque me ama,
Ou, porque me não ama, me procura.
Aqui, sem árvores, não tece teia
A aranha da ventura e desventura.

Aqui farei meu lar, onde estou só.
Aqui, enquanto vive o que em mim vive
Do que eu sou que é igual ao sol e ao pó,
Terei não ter aquilo que ontem tive.
Serei rico de quanto eu abdiquei,
E nem com saudades amarei
Esse vale visível onde estive.

Lá em baixo vejo — o sol lhe doura a quinta,
E há um brilho vago, que é o do tanque ao sol —
O lar onde morei a vida extinta
De que subindo me desapeguei.
Outrora a sombra áurea ante o arrebol
Vinha pelo pomar quási indistinta.
Tantas vezes, disperto, a vi e amei!

Também, o um pouco à esquerda, onde há a ponte,
(Vejo de aqui o rio um pouco além,
Mas não a ponte) me recorda o quando
Meditei, jovem, meu destino insonte,
Na ponte recostado meditando.
Amar, vencer, ser tudo — era o horizonte.
Melhor é o nada que este monte tem.

Tudo me lembra qualquer coisa… Tudo
Tem qualquer cousa minha ou eu de ali.
Não há nada visível, neste estudo
Do meu passado, feito já de aqui,
Que não tenha de meu uma saudade,
Que não tenha de seu a realidade
Invisível do que eu ali vivi.

Mas mais que o gozo, certo ou só sonhado,
Da vida nesse vale e campos vastos,
Valeu o gesto de deixar o gado
Sozinho, entregue à vastidão dos pastos,
E tomar o caminho da montanha,
Que o sol que nasce e o sol que morre banha,
E a eterna neve enche de mau agrado.

Aqui estou, e contento-me de ver
Sem saudades o que abandonei
Com saudades que não julguei ter,
Com prantos e amarguras que sequei.
Aqui, na alta e solene soledade,
Sozinho com a neve e a verdade,
Tenho-me a mim, porque tudo abdiquei.

Nada me tira a mim neste degredo
A que os astros não faltam. Nada aqui
Floresce ou lança sombra. Nem a medo
Um passo se aproxima ou se recua.
As nuvens, vivas rente ao meu segredo,
Fecham-me aos que do vale onde vivi
Vivem de alheio vestindo a vida sua.

Aqui sem lar nem casa morarei.
Nesta caverna altíssima, que fita
Entre o poente e o sul, descansarei.
Sobre a própria alma, reinarei,
Liberto da ventura e da desdita.

Meu corpo mirrará de solidão.
Minha alma secará de estar sozinha.
Minha voz perderei de não ouvida.
Mas serei dos que, na órbita mesquinha
Da vida, por ser altos, nada são;
Dos que preferem a Montanha à vida.

26-9-1932
Fernando Pessoa, dessa vez ortónimo

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2021

15 de fevereiro

Hoje é dia 15 de fevereiro do único Carnaval que não existiu, na história da Universa. Mesmo quando disseram que outros carnavais tenham sido anulados, nenhum ultrapassa esse, 2021, Apocalipse.

Poucas vezes saio à rua para fumar um cigarro. Às vezes, preguiça. Mas muito, muito mais por rebeldia. Odeio seguir quaisquer regras, principalmente se são impostas sem lógica ou contra-argumentação. Aqui não se pode fumar em sua própria janela.

Almocei muito mais tarde do que de costume, por acreditar nas curas infindáveis que possuem as segundas-feiras, frente às nossas ilusões de mudança.

Estava à espera de um livro desde o ano passado. A data prevista era hoje.

Um ano e meio atrás descobri uma obra esotérica inacabada de Fernando Pessoa, intitulada O Caminho da Serpente. Atravessei um verdadeiro périplo, à sua procura, cá, no mundo invertido.

Ano passado descobri um vendedor misterioso, na OLX. Mas, com o avanço da miséria, decidi esperar para comprá-lo.

Finalmente, na última semana, depois de receber uma negativa da editora – o livro estava esgotado há anos – recebi um e-mail da Sem Nome, oferecendo-me uma rara cópia. Assenti, imediatamente.

Às 16h16 do dia de hoje fui fumar um cigarro no degrau da minha casa, em frente à igreja de Santo António. Pelos meus cálculos pandémicos, com sotaque lusitano, minha encomenda seria adiada até quinta ou sexta-feira.

O carteiro apareceu. Simpatissíssimo, alto e magro. Ofereci-me para destrancar a porta,

facilitar sua vinda.

E brinquei:

– Não me diga que há um livro em meu nome!

Ele sorriu e me ofertou, com ares de presente. Todo regalo merecia ter essa chegada triunfal!

Assim, a partir desse instante, eu o possuo, na doçura clariciana. Navegamos pela casa, em busca de novos inquilinos para os seus dizeres. Quero ajuda em decifrar esse oásis cósmico que me foi entregue, hoje, segunda-feira de Carnaval.

Minha alma nunca esteve tão envolta em lantejoulas, confetes e serpentinas.

Way of the Serpent.

“No seu feitio de S (que, se se considerar fechada, é 8, e, deitado, igualmente serpentino, Infinito), a Serpente inclui dois espaços, que rodeia e transcende. (O primeiro espaço é o mundo inferior, o segundo o mundo superior.) Em outra figuração serpentina — a da cobra em círculo, a boca mordendo a cauda —reproduz-se, não o S, de que a letra é sinal, mas o círculo, símbolo da terra, ou do mundo tal qual o temos. No feitio de S a Serpente evade-se das duas Realidades e desaparece dos Mundos e Universos.

A ilusão é a substância do mundo, e, segundo a Regra, tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente. Assim, quando fugimos do mundo inferior, por ele ser ilusório, o mundo superior, onde nos refugiamos, não é menos ilusório; é ilusório de outra, da sua, maneira. Só a Serpente, contornando os infinitos abertos — ou os círculos «incompletos» — dos dois mundos foge à ilusão e conhece o princípio da verdade.

A magia e a alquimia têm ilusões como a ciência e a sexualidade, que são as suas figurações no baixo mundo. Construímos ficções, com a nossa imaginação, tanto na terra como no céu. O mago, que evoca determinado demónio, e vê aparecer materialmente esse demónio, pode crer que esse demónio existe; mas não está provado que ele exista. Existe, porventura, só porque foi criado; e ser criado não é existir, no sentido real da palavra. Existir, no sentido real da palavra, é ser Deus — isto é, ter-se criado a si mesmo; em outras palavras, não depender substancialmente de nada e de ninguém.

A G. O. [Grande Obra] é a libertação, no homem, de Deus, a crucifixão do desfolhável no morto, do perecível no perecido, para que nada pereça. A G. O., em outras palavras, é a criação de Deus.

A magia e a alquimia são caminhos de ilusão. A verdade está só no instinto directo (representado nos símbolos pelos cornos) e na linha directa da sua ascensão ao instinto supremo; no instinto directo, cuja forma activa é a sexualidade, cuja forma intermédia é a imaginação, fantasia, ou criação pelo espírito, cuja forma final é a criação de Deus, a união com Deus, a identificação abstracta e absoluta consigo mesmo, a verdade.”s.d.

Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética – Fragmentos do espólio . Fernando Pessoa. (Introdução e organização de Yvette K. Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.  – 30.

“O Caminho da Serpente”

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A Mãe e o verbo

“No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois.” Marilyn French

Eu nunca saberei se viemos da mesma linhagem de Deusas. Se fomos queimadas juntas, na Escócia. Ainda tentamos compreender como se deu a transformação fatal: de símbolos da sabedoria e fertilidade às primeiras pecadoras.

Uma das forças mais belas da Natureza, contudo, é a sincronicidade. Jamais saberemos como fazer essa magia: ela não está nos livros, nem se executa através das plantas curadoras. O Cosmos é quem nos presenteia com os encontros. Bruxaria ainda mais complexa que nossas próprias habilidades.

Não consigo me recordar qual era o propósito daquela festa, no prédio onde nasceu Santo António, no fim do ano de 2017. As festas, neste sítio, não precisam de justificativas. São redondas em si mesmas.

Lembro-me bem de quando o André, seu marido, chegou perto de mim para pedir um favor, inusitado. Logo atrás dele estava você. Não demorou um átimo de segundo para que viesse a primeira pergunta. Ah, mal sabia eu que essa pergunta certeira seria o início de uma amizade indescritível.

Você me ensinou que a música eletrônica pode ser o gatilho para uma espiral de ideias geniais, em plena Lux. Acredito que, através de mim, você tenha aprendido a ouvir meia dúzia de poemas, sem pestanejar.

De pergunta a pergunta, descobrimos tantas cousas juntas: a paixão corinthiana, os desvarios pelas noites paulistanas, o medo de habitar Lisboa. Depois de adulta, acho que só passei horas ao telefone contigo. Quase adolescência tardia.

Você me deu abrigo quando eu não tive casa. Ia, desesperada, limpando meus vestígios, minha bagunça, meus desamores. Entanto, antes de não ter casa, você me alertou que a irresponsabilidade me traria frutos traumáticos. Às vezes penso que, consciente ou não, você sabia que eu precisava passar pela dor, na jornada que conduz à maturidade.

Eu demorei meses para escrever esse texto. Primeiro, busquei as raízes cármicas da feitiçaria. Nas últimas semanas, estava à espera de encontrar inspiração na origem órfica do Universo. Hoje, percebi que só meu coração seria capaz de enaltecer sua presença em mim: sem bibliografia ou metáfora. Nunca precisamos disso.

Quando eu penso em uma palavra para descrever sua presença: mãe. Uma mãe igualzinha à do Universo. Você nunca foi mãe, mas é. Cuida das pessoas ao seu redor, com carinho e bondade inenarráveis. Embora não seja uma pessoa exagerada nos afetos. Severa ternura.

Sou testemunha de como você foi capaz de se relembrar como os astros dançam, apesar de jamais ter estudado a amplitude cósmica. Você já sabia de tudo. Conjunções, estrelas, mercúrios retrógrados. Como é que você sabe de tudo isso, minha amada?

Aceito suas perguntas, em vestes de ancestralidade.

Mãe.

A chuva de meteoros não veio ontem, como presságio que faltava para mim.

Mas há, aqui em casa, o sino da igreja. Ele toca a cada quinze minutos, impedindo-me de esquecer do sagrado.

Já faz tempo que busco o sagrado em tudo: nos códigos galácticos, na interioridade das águas, na condição de arrepio que percorre o corpo, ao meditar.

O sagrado se manifesta para além do milagre?

Sim.

O sagrado se manifesta, todos os dias, quando ouvem seus questionamentos.

Mãe, a mudez celestial é incapaz de controlar a sua luz.

Amo-te.

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Para Fefê

FefeDada

Nenhum domingo deveria ser digno de tédio. Sempre acreditei na abundância invisível dos domingos, silenciosa, quase casta, sublime em seu poder transformador. Muitos se amparam nas certezas que os domingos nos trazem. Almoços marcados há semanas, jogos de futebol, tristezas ao pensar no eterno retorno ao trabalho. Domingos são, geralmente, fraseados pelos contornos.

Minha vida mudou para sempre em um domingo. Era dia 24 de junho de 1990. Nosso pai estava cobrindo o Brasil na Copa do Mundo da Itália. Fui acordada, por volta das cinco, com a inquietude de mamã. A bolsa havia se rompido.

A Rose estava aflita, ligava sem parar à tia Helena e à Tereza. As duas prepararam, às pressas, a mala do hospital. Só agora me dei conta que foi um momento de bruxaria estelar, feito apenas por mulheres.

A tia Helena morava a vinte metros de casa. Por conta da idade e do horário, demorou para se aprontar. Tereza atravessou todos os faróis vermelhos. Atravessou também o nosso apartamento, em desespero, juntando as roupas e os olhares de todas nós.

Não me deixaram ir ao hospital. Lembro-me tão bem do Caminhoneiro Shell, passando na televisão. Até hoje não compreendo como puderam acreditar que o pior de todos os programas iria me entreter. Eu estava repleta de pavor e ansiedade, assim como ocorre em quase todas as mudanças da vida.

Tu chegaste a este mundo às onze horas. O fofinho já estava no hospital, como num passe de mágica. Em todas as minhas narrativas, este fato só pode acontecer porque o Brasil havia perdido da Argentina. Ele, então, foi dispensado da cobertura. Hoje, descobri que o jogo fatídico aconteceu no mesmo dia do teu nascimento. E ninguém soube me explicar como – entre as cinco e as onze da manhã – ele se locomoveu tão rápido entre dois continentes, só para assistir à tua vinda.

Passado o trauma do Caminhoneiro Shell, e de todos os medos que me inauguraram, naquela manhã, escolhi um bichinho de pelúcia para te dar, comprado, também às pressas, no andar da maternidade.

Tu, por escolheres nascer no dia de São João, para completar a nossa família abençoada pelos santos, vieste prematura. Um mês de U.T.I. Não tinha um milésimo da beleza que compõe tua alma, agora.

Escrevi-te um poema, logo no primeiro dia. Foste tu a apagar os rastros de princesa para o fado da Poesia.

Quando tu tinhas três anos fizemos coreografias do Paratodos, em Londres. Brigamos muito, como é óbvio entre irmãs. Temos as piadas internas mais infames e mais engraçadas de toda a Universa.

Eu converso contigo telepaticamente, todos os dias. As sincronicidades celestiais nos invadem pelas madrugadas.

Espero que tu possas me perdoar pelos bullyings de irmã mais velha e por todos os meus defeitos. Já faz quatro anos que não nos vemos, meu amor.

Desejo-te sonhos de mar. Pinturas em nanquim e aquarela. Poemas que ultrapassem a condição humana e alcancem a Deusa. Caldeirões com livro das sombras, pães mágicos e gatos pretos. Risadas incontroláveis, maratonas de filmes, cidades imaginárias.

Amo-te muito my precious, com todas as forças galácticas.

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Pessach

Uma espiral no sentido anti-horário sobe pelas minhas pernas. Desorganiza todas as células. Dança, imprevidente, pelo contorno dos ossos, salta no umbigo, cresce e borbulha no chacra cardíaco. Sua cor é dourada. Apossa-se de mim, instrumento, para rodopiar em volta do pescoço. Acelera meus olhos: um está com lentes de contacto; outro insiste na miopia. A energia, bailarina, encontra-se, enfim, com a glândula pineal. Expande-se tanto, tão absurda, tão sincrónica, a ponto de dissipar-se pela coroa da minha mente. O corpo todo estremece.

Aprendi a meditar em Janeiro do ano passado. Havia fugido de Lisboa, com a certeza de ser feliz, em outro sítio. As redes sociais, na altura, só me lembravam dos fracassos, da loucura, da incapacidade de pertencer a este mundo. Desliguei-me, por alguns dias, daqueles sorrisos insuportáveis, das fotos paradisíacas, dos encontros amorosos.

Meditar nada tem a ver com a ausência de pensamentos. Meditar é aceitar que as nuvens passam. É um exercício de desobsessão das ideias. Agradecer a impermanência de todas as cousas. Venerar a eternidade do instante.

Tive a ilusão de que este período de cárcere pudesse trazer à luz a destrutibilidade. Quantos seres humanos já terão passado pela prisão, anteriormente? Navego, embasbacada, pelas mesmas redes sociais que outrora intensificaram minha depressão. Vejo um arsenal de coachs quânticos, sem nenhum estudo ou formação. “Como melhorar sua autoestima com a dança”, “Aprenda a ser líder da quarentena”, “Tome as rédeas de sua vida com o Yôga”, “Aumente seus seguidores com lives”.

Minha melhor amiga me confessou como estão os grupos de whatsapp das mães da escola da minha afilhada. Ególatras, elas clamam pelo posto de mãe da quarentena. Humilham as outras mães, com bonecos feitos de pepino, cabanas educativas, lições de casa em aquarelas.

Escrevi, há muito, quando o despertar me levou aos confins da minh’alma: somos nossos maiores Deuses. As pessoas, no entanto, ainda desejam ser deuses para os demais, esquecendo a si mesmas e sucumbindo aos seus egos.

Que paradoxo incrível! O mesmo ego, frágil e dilacerado, é quem dita as fórmulas irrisórias de sucesso.

Não julgar essas pessoas é o maior desafio para mim, neste momento. Contudo, é nítido que a vulnerabilidade se faz cada dia mais necessária para discutirmos os possíveis futuros do ser humano. Ninguém está tranquilo, nenhuma invertida trará ao seu cérebro as respostas, muitos não têm acesso a verduras para comer.

Desde sábado, quando o portal se abriu, não preciso mais meditar para sentir a eletricidade percorrendo todo o meu espírito, em sentido anti-horário. Como é óbvio, D’us!

A Universa é avessa ao tempo.

Ontem, todavia, acordei completamente derrotada. Os espasmos se intensificaram mais. A poesia cósmica acometeu todo o meu corpo. Não consegui ler uma linha de Foucault, senti-me burra, não tinha dinheiro nem para comprar ovos. Uma tristeza sem proporções literárias me atingiu. Apenas a meditação me trouxe paz, por algumas horas. Pedi perdão à minha professora do mestrado, pois não possuía forças para aproximar filosofia à realidade. E ela, com a nobreza do sagrado feminino, acolheu minha ferida.

Chorei até jogar a lente de contacto no lixo. Como ultimato aos estranhos desígnios dessa missão terrestre, liguei à minha Mamã. O útero, sem respostas, sem receitas, sem vontade de competir, é-me a única salvação.

A Terra, Gaia, Danuih, não espera que sejamos fortes. Ela nos alerta sobre a fragilidade na qual vive, desde a nossa invasão. Pede-nos para, em espiral anti-horária, sustentarmos o renascimento profético.

Pessach, sagrada travessia, é chegada a hora de enaltecer incompletudes.

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Guarda-rios

Meu avô era apaixonado por passarinhos.
Curiós, canários, coleiros.
Todos confinados em gaiolas
desde o nascimento.

Ele os alimentava
e sentia um amor profundo
tenho a certeza.
Cantavam
à revelia de suas prisões.

O raríssimo guarda-rios anão de Mindanao
foi fotografado
Hoje
pela primeira vez
em cento e trinta anos.

Um golfinho espalha sua linguagem
Cósmica
nos canais azuis de Veneza.

A Natureza se refaz
Magistral
enquanto o vírus humano
está em quarentena.

Meu avô confinava passarinhos
e eu sei o amor que tinha por eles.

Hoje,
Enjaulados,
vejo o amor
que o planeta
ainda tem por nós.

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Às avessas

 

“Para além das ideias de certo e errado existe um campo. Eu me encontrarei com você lá”  Rumi

 

Esta noite sonhei com alguém que fez parte do meu convívio íntimo por anos. Eu e ele,  apesar de vivermos próximos, nunca nos aturamos. No sonho havia uma estrada repleta de buracos e desfiladeiros. Eu conduzia a partir do banco de trás, com dificuldade, desviando do perigo. Um caminhão, desgovernado, ultrapassava-me e capotava, logo a seguir. Parei, aturdida. Meu desafeto saia da mata, inconformado com a cena grotesca. Reconhecíamo-nos, pois, a assistir os destroços do veículo. Ele me abraçava, chorando. Juntos, buscamos socorrer os passageiros. Não havia ninguém.

Olhei-o nos olhos e o questionei, mentalmente: “por qual razão sempre foste tão duro comigo?” Ele, desamparado, respondeu, também em silêncio: “porque jamais tolerei a tua capacidade de ser frágil.”

Acordei aliviada, a sentir uma reparação, vinda do Universo.

Acolheria-o, se pudesse, imediatamente no meu colo, afagaria seus cabelos, conectar-me-ia com a sua dor. Eu não sou uma pessoa rancorosa.

Ao descobrir o livro de Marshall Rosenberg, Comunicação Não Violenta, tive o ímpeto de pedir perdão a todos os seres humanos com os quais convivi. Pai, mãe, irmãos, amigos de infância, ex-namorados, colegas de trabalho. Para alguns pude enviar pequenos textos. Para outros enviei mensagens através das meditações. Contudo, jamais tive a coragem de escrever para a personagem do sonho. Foi uma profunda libertação cármica.

Sei que posso parecer arrogante, superior, ao declarar isso. Mas é o inverso. Sou imensamente falha com os meus. Inúmeras vezes fui ingrata com aqueles que mais amo. Sinto que, com eles, posso errar.

Talvez a linguagem seja o maior paradoxo humano.

A palavra é o amor mais doloroso da minha vida. Nasci, sem a menor possibilidade de escolher, em uma família literária. Em nenhum momento tive chance com os lápis de cor, telas, instrumentos musicais.

A escrita foi-me, desde menina, a maior de todas as libertações. Não sei falar, posso escrever. Não sei pedir perdão, posso escrever. Não sei amar, posso escrever.

Escrever em uma tempestade, encostada no caixote do lixo. Escrever, com a caneta violeta e cheirosa, no papel de carta. Escrever um bilhete no caderno rasurado. Escrever antes de viver, escrever acima do vivido, escrever para seduzir o interlocutor. Escrever.

No nascimento da minha irmã: escrevi. Ao perder meu namorado, na oitava série, escrevi. Para dominar o pavor que sentia, escrevi. Sinto que não existo, desprovida dessas armas sutis, escritas.

Por que as confissões, não escritas, parecem tão laboriosas?

Dizem que há um outro planeta, muito semelhante à Terra, onde são todos telepatas.

E se fôssemos todos telepatas? O que aconteceria com nossas relações, caso os outros soubessem verdadeiramente o que se passa dentro de nossas mentes vis? O que aconteceria com a literatura?

A comunicação, quando afastada da vulnerabilidade, leva-nos à violência. Somos treinados, desde crianças, a esconder nossos desejos, a travestir nossas carências, a ocultar as fraquezas. Entanto, há mais magia em sermos incompletos. E a poesia nos devolve esse sentimento. A poesia livra-nos da sordidez.

Hoje, ao acordar, mentalizei esse ser humano que fez parte da minha existência. Essa pessoa que eu julguei ter-me feito mal. E a ele pedi perdão. E a mim também. Libertei-me dessas memórias não afetivas. Espero que um dia possamos nos encontrar, em absoluta fragilidade, no mundo invertido.

Quem sabe, em uma manhã de outono, acordarei desarmada, telepática.

Enquanto isso vou enfrentar a realidade com poesia, escrever delírios, revisitar meus fantasmas no porvir.

 

Dedico este texto ao meu querido amigo Adriano Toloza, aquele me ensinou a olhar para os paradoxos com afeto.

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Milagres em Sigilo

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Para André Pratas

Há uma cousa peculiar, cá, no mundo invertido, que diz respeito aos milagres. É o anonimato. Não conheci, em nenhum outro lugar do mundo, um país que abrigasse tantos e tão diversificados milagres, em absoluto silêncio.

As águas em Portugal são milagrosas. Uma delas, a água das pedras, gaseificada naturalmente, pode vir de chuvas que ocorreram há mais de dez mil anos. Com um gosto levemente salgado, é capaz de curar todos os tipos de enfermidades: ressacas, dores de estômago, envelhecimento das células.

Eu, que fui até então viciada em coca-cola, há muito tempo já não tenho a menor vontade de trocar uma água das pedras pelo refrigerante. Em todas as horas do dia: de manhã, com café e pastel de natas; de noite para tentar impedir o álcool de assombrar meu espírito; e novamente de manhã, caso o vinho tenha sido em demasia. Alguns meses atrás aprendi, contudo, outro segredo dessa bênção: não se deve bebê-la gelada. E sabe bem na mesma.

A segunda água que é milagrosa não fui eu que descobri. Uma amiga, filha de oftalmologista, contou-me que seu pai não podia acreditar no ocorrido com uma paciente. A mulher, quase cega, veio para alguma região portuguesa e depois de levar a água à face, não precisou mais ser operada. Sua visão sarou completamente. Tentamos descobrir onde está essa fonte poderosa mas, como disse no início, aqui os milagres preferem ficar incógnitos.

Contarei sobre a terceira água milagrosa – porque eu fui curada com ela. Em 2018, depois de passar por um trauma, fiquei profundamente fragilizada. Andar se tornou uma obsessão, proveniente do estresse que passei. Necessitava flanar por Lisboa, às vezes o dia todo. Em alguns deles, cheguei a contabilizar os 40 quilômetros. Meu espírito me dizia que os passos me seriam capazes de controlar a angústia. O azul me protegeria da desumanidade vivida. As colinas apaziguariam as memórias. Tudo em vão.

Em volta do meu joelho direito, que já foi operado, formou-se um edema gigantesco. Ironia das águas. Mal conseguia colocar o pé no chão. E o verão ignorou completamente meu sofrimento.

Um dia, sem conseguir me mexer, recebi um telefonema para ir à praia de Avencas, na linha de Cascais:

– Não posso, mal consigo andar – respondi, tristíssima.

– Foda-se, Mari, estás parva? Estou a convidar-te justamente por isso. A praia de Avencas é famosa por curar os ossos. Há até um sanatório para os velhotes lá. Vais ver que teu joelho estará recuperado, depois de um banho de mar. Confia em mim.

Pensei no nível de loucura desse amigo. Eu sou fiel aos loucos. E mais fiel ao absurdo, ao imponderável, ao milagre. Nunca confiei na realidade. Decidi, pois, aventurar-me com ele, já que não precisaríamos do comboio. Ele me levaria de boleia em seu carro.

Chegamos à praia. Pequenina e doce. Abarrotada de gente. Um bar fica logo à direita. É preciso descer as escadas para ter acesso ao mar. Meu amigo, um verdadeiro lorde, ajudou-me com a perna, imóvel.

O calor era brutal mas incapaz de acalmar a gelidez da água. Sentei-me numa pedra porque meus pulmões quase congelaram, no primeiro mergulho. Foi quando aconteceu o milagre: peixinhos amarelos dançavam à minha volta. Senti o golpe. Três facadas marinhas, travestidas de arrepios. Diretamente no meu joelho direito. Submergi, novamente, implorando aos deuses aquáticos para que me preservassem o respirar, no retorno. Era humanamente impossível permanecer mais tempo naquele oceano.

Levantei, ainda incrédula. O edema já não fazia parte de mim. Caminhei na areia, esticando todos os membros do corpo. Olhei para o meu amigo, embasbacada. Ele assentiu, como se o milagre fosse o óbvio. Não havia inchaço, não havia dor.

Uma melancólica sensação tomou conta do meu enternecimento. Como seria possível curar, em questão de segundos, um trauma que durou 13 dias? Em quais magias navegam esses portugueses, que não contam a ninguém seus santos? Por que não estranham esses acontecimentos? Por um átimo de segundo senti que D’us finalmente se rendia às minhas injúrias. A vida reverenciava meus sortilégios.

Minha mãe, desesperada com os meus abismos, decidiu passar uma temporada em Lisboa. Aquele ímpeto maternal. A tentativa de deitar fora minhas mazelas, de botar unguentos na minha alma. Levei-a imediatamente à praia de Avencas, na estúpida tentativa de curar suas ruínas. Pena que ela não seja crédula como eu.

Ao subirmos as escadas, para comer um camarão e tomar uma imperial, vimos a placa do bar: não é permitido entrar molhado, descalço ou com areia. Mundo invertido.

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A igreja profana

A noite estava gelada. O vento atravessava os cem quilômetros por hora. Quase nenhum ser humano saia às ruas. Eu, que não carrego a normalidade nas veias, jamais me importei com a magnitude do frio. As chuvas, invernais, causavam-me muito mais desespero. Em partes porque, naquela época, meus pés escorregavam nas calçadas. Não cair era um trunfo diário.

Que saudades daquele novembro, 2008!

Matilde estava se despedindo de Lisboa. Depois de dois meses, concluía o intercâmbio. Ela, formada em Letras, tradutora, conheceu Clarice Lispector pela minha voz. Tive uma tremenda sorte de a ter cruzado em minha breve estadia na cidade. Eu havia alugado o quarto, em uma vila operária, na travessa das Recolhidas, ao pé do Campos Mártires da Pátria.

Quando adotei a casa, não fazia ideia das personagens que chegariam depois de mim. Primeiro veio o Wagner, um paulistano de quarenta anos, solteiro, bizarro. Nunca tinha morado sozinho, como eu. Era fissurado em aeroplanos. Acordava às seis da manhã para colocar seus brinquedos a voar. Não fazia a menor ideia de como se cozinhava. Eu, que me considero uma péssima cozinheira, compadecia-me da sua inabilidade. Com receio, também, das suas esquisitices. Trancava-me, às vezes, no quarto, à espera que ele saísse. Ele insistia em contemplar a solidão.

Matilde, porém, chegou em um dia azul, travestido de primavera. O mais pequeno dos três dormitórios estava à sua disposição. Ela não falava muito português. Cabelos negros e invejáveis, um sorriso misterioso. Ar de realeza. Vinha da Galiza, onde as línguas se misturam e se esquecem de pertencer a territórios. Tornamo-nos amigas e confidentes, desde o primeiro cumprimento.

Uma dor inenarrável me engolia, com a partida dela. Para além da ausência, há qualquer cousa que nos toma, quando perdemos a companhia, nessa trajetória inexplicável que permeia o estrangeiro. Pensei, então, em fazer uma surpresa e levá-la ao sítio que me foi recomendado, por inúmeros residentes.

Alfama.

Passamos três horas à procura. Xinguei todos os deuses e reclamei por sete vidas, naquela espera. Eu, que odeio esperar, que odeio me perder. Quando finalmente desistimos, chegamos. Obviedades de quem precisa curar as cármicas demoras.

A porta era ínfima. O entorno, silencioso. Será que haveria o tesouro prometido, atrás daquilo? Batemos. Um homem muito estrábico, muito mais estrábico que a conjunção de todos os existencialistas, atendeu. E nos deixou entrar.

Um universo mínimo abriu-se, à nossa volta. Mesas quadradas e jogadores de xadrez. Senhores com guitarras portuguesas e vozes de fado. A dona, atrás do bar, antipática, bravíssima, parecia uma entidade de outro planeta, mais delicado.

Alguns bêbados se juntaram às cantorias e o mínimo se transformou em cósmico. O barulho, no entanto, desfavorecia o habitat. Teriam que fechar, pelo medo às denúncias de vizinhos. Eu só agradecia por ter acessado o lugar mais belo que existia no mundo.

Às três da manhã, embalados pelo vinho e pela música, fomos convidados a nos retirar.

A Lua acalmou os ventos.

Os antigos frequentadores nos convocaram, então, a saborear o fim da noite, na igreja:

– Na igreja? – disse, com profundo pavor pelos instantes futuros.

– Não é uma igreja usual, podes confiar em mim. Moro ali ao pé – retrucou Jorge, o fadista vadio, surpreso com a minha indignação.

Passamos pelo Beco da Maria da Guerra, antes de subir as escadas. Uma esplanada imensa, branca, repleta de árvores e ancestralidades. O belo miradouro, encharcado pelo Tejo e pelos telhados encarnados.

A cruz, à esquerda, daquelas em que Cristo não reside.

Aos poucos, músicos foram chegando. Será que ouviram os chamados, indubitáveis?

Como é possível, meu D’us, uma igreja condensar essa malta dissidente?

 

Não houve santos, nem castidade. Apenas alma e poesia.

Saímos de lá às sete da manhã.

Exaustos.

Matilde apanhou o comboio. Eu fui trabalhar. Estarrecida de não ter comigo alguém que testemunhasse, uma vez mais, a surrealidade.

Quando retornei ao bar, na semana seguinte, sozinha, percebi que a igreja fazia parte do espetáculo.

Violões, guitarras, flautas, percussões, trompetes.

Ébrios, todos os amores e todas as sandices eram abençoados por Santo Estêvão.

Sem imagens, sem sacrifícios.

Pensei em escrever à Matilde, imersa em uma nostalgia inconsolável.

O amanhecer mais belo de toda a minha existência foi ali, no instante em que vi o profano acarinhar as estrelas.

Na parede, insuportavelmente virgem, os dizeres, pichados:

 

“É tão difícil

guardar um rio

quando ele corre

dentro de nós”.   

Jorge Souza Braga

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Neon

Neon

Ele devia ter uns oito anos. Eu, uns três. A gente assistia, de forma ininterrupta,  História sem Fim. Eu era completamente apaixonada por aquele menino. Ficava a imaginar que era meu Atreyu.

Não sei quando percebi que ele era anão. Minha excêntrica memória não me permite acessar essa descoberta. Desde então, tenho uma profunda admiração por anões. Virou quase um fetiche, quando me deparei com a volúpia que contorna Peter Dinklage, o Tyrion Lannister.

Eu contava essa história a dois amigos de infância de uma amiga querida, aqui no mundo invertido. Estávamos em um restaurante, ao pé da Sé, conhecido pelas amêijoas à Bulhão Pato e seus garçons piadistas. Nenhum tio do pavê se sentiria tão humilhado, nesse dia, se ouvisse a comédia de erros a qual assistimos. Piada ruim vira a maior piada do mundo, se a companhia é certeira.

Já saímos um pouco embriagados e, acima de tudo, atordoados pela infinitude que cercava o cérebro daqueles garçons, incansáveis em encontrar o cúmulo dos absurdos. Era a final da Libertadores e todos os nossos corações já sabiam da alegria que nos viria encontrar, em algumas horas.

Fomos descendo, agradecendo o existir ao cruzar o miradouro das Portas do Sol. As cores mudavam, a cada tocar dos sinos, entre amarelos, azuis improváveis e encarnados divinais. O céu dessa cidade está além de todas as psicodelias.

Na encruzilhada da Mouraria, ao fim da rua dos Cavaleiros, avistamos uma personagem absolutamente surreal, frente às conversas de antes: uma anã com um colete fosforescente.

Ali é um sítio conhecido por circulação de entorpecentes e prostituição. Um contraste com a Lisboa betinha, cafona, rica. Esta é uma junta de freguesia de imigrantes, miscigenações, conflitos.

A anã, bravíssima, orgulhosa e nem um pouco discreta, pulava por cima dos carros para verificar possíveis ações policiais ou eventuais clientes. Eu fiquei extasiada em ver a cena. Parecia que os deuses – que me conhecem muito bem – presentearam-me com uns takes de Fellini.

O Flamengo foi campeão. Pensei no meu tio, que foi médico deles e recebeu uma homenagem quando deixou esse plano. Chorei litros, com algumas esperanças renovadas em ser humana. Tivemos uma noite inenarrável.

Entanto, eu jamais me esqueci da anã, dona da boca. Era uma das materializações mais incríveis do mundo invertido. Assim, sempre que podia, passava pelo seu ponto, à espera de encontrá-la novamente.

Eu não sou jornalista, mas filha deles. Há qualquer cousa que clama pela investigação, dentro da minh’alma.

Foi então que, em uma despedida de visitas, a última ceia lisboeta deles, descemos as ruas da Graça, para almoçar no chinês clandestino que toda a gente conhece. Poderia ser mais uma anedota invertida. Eu contei a história da mulher que era a rainha daquela zona, soberana.

Disfarçada com o colete neon, lá estava ela. A orquestrar aquela gente toda. A entrar nas lojas e confiscar guarda-chuvas, meias ou qualquer utensílio que lhe apetecesse. Ela é a rainha e, como é óbvio, não paga por isso. Percebi seu olhar, cuidadoso.

Do outro lado da rua, melancólica e indecisa, pousada na parede triste da esquina, havia uma travesti de moletom.

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Bacalhau com natas

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“Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.

Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, num sentido verdadeiro.

Tudo aquilo que em nossas actividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.

O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.

Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro que afaga.

A verdade nunca, a paragem [?] nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!”

Autobiografia sem factos, in O Livro do Desassossego, Bernardo Soares

 

As primeiras gotas de chuva se esqueciam de me pingar, protegida pelo ombrelone do quiosque, na Praça de Camões. Alguns minutos antes, em uma conversa digna da faculdade, daquelas em que saímos plenos de coragem e amor pelo existir, senti-me ínfima, perante o alumbramento. Meu amigo foi embora e eu tinha a obrigação de desvendar os caminhos, sedentos de futuro.

Como seria possível retornar à Lisboa, depois de tantos anos?

O choro começou em calmaria. Não havia pelo que desesperar. O voo estava confirmado para a próxima manhã. A cidade parecia destronada, em minha profética ausência. Alguns turistas insistiam em comer pastel de nata. Já não havia mais ninguém na esplanada, além de mim. Do outro lado, um homem com um chapéu de chuva, bem pequenino, tentava proteger seus pertences, coberto pelo telhado do banco. O slogan de um cor de rosa tão familiar, anos 90.

“Se ele ficar um pouquinho mais à esquerda, tiro uma foto primorosa”, pensei. E pedi. Já não possuía nenhuma dúvida, nada me era mais importante do que ser eu, em Lisboa. E, se possível, eternizar aquela noite, aquele dilúvio. Talvez a nossa última separação.

O homem assentiu, como se soubesse do nosso encontro. Depois de tirar umas tantas fotos, dirigindo meu modelo, fui ao pé dele, para agradecer aos instantes cinematográficos.

Só ai é que pude enxergar os seus pertences: meia dúzia de papelões, encharcados. Ele, muito ruivo, barbudo, logo veio reclamar:

– É muito difícil ser morador de rua cá, no Camões. Especialmente quando chove!

– Não posso concordar. Não é fácil ser mendigo em qualquer parte do mundo. O senhor não conhece a Cracolândia, em São Paulo.

David é romeno, mas já mora em Lisboa há treze anos. Fala oito línguas fluentes e é viciado em História.

Fumamos um cigarro. Peguei meu telemóvel, para checar as horas: 20h20. Havia combinado de jantar no Bairro Alto, para me despedir do Matheus, amigo lisboeta de longa data.

Olhei para a beata do cigarro de David. Ela se diluia na calçada de pedra sabão. Talvez mais próxima aos seus sonhos do que ao meu jantar. E decidi. Iria levá-lo para comer bacalhau com natas. Telefonei ao Matheus:

– Vou levar o mendigo para o jantar.

Ele, de família circense, canceriano e leve, nada questionou. Disse-me:

– Óbvio que sim!

Fomos ao Baiuca, na rua da Barroca. A gentileza de Izidro, o garçom, e da Eliana, a dona, já amenizavam as águas e o medo que eu tinha de levar um morador de rua a um restaurante. Pensamento burguês e nefasto.

Por qual razão teria problema em fazer isso?

De qual sociedade eu tentava me esconder, com meu inusitado convite?

De quem eu estava com vergonha, ao dividir uma refeição com outro ser humano?

Pedimos vinho, aceitamos o couvert farto. Esqueci-me dos euros e da lógica mesquinha. Era minha última noite na cidade em que iria viver para sempre, um dia. David ria, contava suas desventuras amorosas, as dores sutis.

Não havia reclamações sobre a comida, sobre o colchão, acerca das estrelas. Matheus e eu ficamos inertes, naqueles relatos tão certeiros, tão nossos. Como é que uma casa pode nos afastar tanto de alguém que também sonha os óbvios?

Decidi continuar a festa com o mendigo. Fomos à Alfama, ouvir clássicos fadistas, jovens brasileiros e toda a gente que se dispôs a tocar um instrumento, entre o Beco do Vigário e a igreja de Santo Estêvão.

E eu, não sentia pena alguma de pagar uns copos para o gajo. Sentia era pena de mim, obrigada a apanhar o voo, às 10 da manhã. Alfama amarelecia a minha ira, a fome, a lucidez. E as horas passavam entre ginjas e silêncios. Em poesia e despejos. Entre o cúmplice e o cárcere.

No dia a seguir, perdi o voo e o trabalho.

Tive de deixar Lisboa, pela última vez, dois dias depois.

Passei exatos seis meses em São Paulo, arquitetando a espera, condenando a saudade, suplicando por aqueles papelões na praça.

Quando voltei, ao mesmíssimo restaurante, com os olhos repletos de quimeras e os julgamentos afiados, fui surpreendida:

– Mariana, o mendigo foi o maior presente que esse restaurante já teve. Ele vem cá toda semana, traz inúmeros gringos e ainda diz que temos o melhor bacalhau com natas da cidade. Tu nos fizeste um bem enorme de o ter trazido.

Aceitei aquelas palavras.

O mundo invertido foi inaugurado naquele instante.

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A memória em vertigem

Democracia em vertigem

“(…)Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?” Bernardo Soares in o Livro do Desassossego

 

Mnemosyne estava farta daquela espera ancestral. Ébria de viver na antemanhã do futuro, decidiu pôr fim aos séculos de clausura e mansuetude. Seus irmãos, Cronos e Oceanos, já haviam concluído seus reinados patriarcais. A hora de equilibrar sua ira com a potência havia, enfim, chegado.

Filha de Urano e Gaia, a deusa titã da memória, mãe das musas, avó dos aedos, sabia que sua aparição, em terra de mortais, poderia alterar o rumo de todos os périplos cósmicos. Também reconhecera o perigo de adentrar em Lethe, o rio do esquecimento. Ah, como sofrera, imbuída em desalento, quando cada alma anunciava o reencontro à vida!

Será que se lembraria de si mesma? Poderia dançar os cânticos que ela havia escrito? Quando seria venerada pelo Universo?

Sentou-se, à beira das águas, contemplativa. Seriam mais fortes as vicissitudes da existência, ao ponto de fazê-la perder-se por toda a eternidade? Sua partida seria, também, a última chance da humanidade. Como não falhar, desmemoriada?

Despiu-se. Nunca havia sido um corpo antes. Como sentiria ter seios, boca, ventre e pés? Há dor na gravidade? Quais exercícios poderia utilizar, como rituais de purificação?

Mnemosyne, como uma nau que parte de Belém, mergulhou no alheamento, para receber a carne. Cronos, no entanto, foi imperdoável: não a deixaria ter a força de uma entidade, por completo. O deus do tempo conhecia os possíveis desdobramentos de sua fuga: a perda de seu trono. O tempo é quem mais se alimenta da amnésia.

Assim, quando ingressou no planeta, Mnemosyne se fragmentou em doses homeopáticas de memória, em diversos seres ao redor do globo.

A história já não reinava, soberana, na Terra. As mãos dos vencedores perceberam que há outras formas de escrever o mundo. Como não há unanimidade para o que foi vivido, é possível perverter os fatos e distorcê-los, em prol da ignorância.

Clandestina, Mnemosyne se defrontava com sua própria face, em poetas, em canções, em gritos pela democracia. Supliciada pelos pavores que se repetem, inadvertidos.

Seria possível, perdida em tantos rostos, preconizar? Recordava-se, aos poucos, nos corações de seus descendentes, de todas as guerras que havia perdido, milênios e milênios. Evocava as lições apreendidas, nas ditaduras, nos campos de concentração, nos massacres escravocratas, no sorriso banguela dos miseráveis. A descida ao inferno não teria valido a pena? Assistir ao inevitável término, do Olimpo, seria menos doloroso?

Certo dia, ao pesquisar os antigos deuses gregos, conheci Mnemosyne. É engraçado porque jamais havia ouvido falar da deusa que é a guardiã da função poética, a diva da música, a senhora da inspiração possuída. Hesitei. Eu sabia que esse conhecimento iria me mudar. Por que nos afastam, com tamanha canalhice, das verdades mais profundas da humanidade? Por qual motivo a sua feição me parecia tão familiar?

“A memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”, dir-nos-á Platão.

Todos os poetas são intérpretes de Mnemosyne. Capazes, como os profetas de escutar o futuro e acessar o invisível. Não à toa, Chico Buarque nos presenteou com o verso, em Choro Bandido: “saiba que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”.

Mnemosyne supera o tempo e o espaço, porque aquilo que é, aquilo que foi e o que será, entrelaçam-se, em melodias e poemas. O cíclico, eterno retorno, faz parte da maldição do esquecer. Enquanto houver esquecimento, haverá repetição.

Somos aqueles que lembramos de ter sido?

Contudo, após longa e profunda meditação, desvendei a misteriosa familiaridade com a deusa. Mnemosyne é Lian, que carrega, nos olhos clandestinos, a lucidez da aletheia. Sua memória, implacável, não se curvou a todas as notícias com que tentaram-na massacrar, camuflando o horroroso passado do Brasil. É curioso perceber como, diante de tantas falsidades, ausentar-se da violência é resistir ao fascismo. Porque todo fascista deseja que nos tornemos iguais a ele. Sanguinários e sujos, com o ímpeto de matá-lo. Evadir-se dos absurdos é algo sublime.

Mnemosyne é Petra, que ilumina a intimidade poética de seus ancestrais em narrativas. A inexorável robustez de trazer às pessoas seus afetos. Parcial, como é óbvio. Sem vergonha, nem culpa. Porque só a mentira é travestida de facciosidade.

Numa época em que a história não possui nenhum valor, a memória talvez seja nossa arma derradeira.

Mnemosyne é a sagrada fonte da consciência.

 

 

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Previsões de ontem

 

Nesta madrugada de fim de ano

aqui,

no mundo invertido,

encontro-me sozinha.

Feliz.

 

Os estranhos desígnios cármicos

me levaram ao profeta português:

Gonçalo Anes Bandarra.

 

Nas minhas pesquisas herméticas

só recolho uma certeza:

as profecias jamais invocaram

a presença feminina.

 

Assim, distancio-me delas.

 

Não há futuro sem mulher.

 

Meu desejo mais profundo

ano novo

é acreditar no equilíbrio

entre os sagrados.

 

Inaugurar a fraternidade.

 

Esquecer dos pavores

que enfrentamos,

duais.

 

Bandarra previu Portugal

como desbravador das intuições.

Eu o corroboro,

com o seguinte adendo:

só uma mãe

é capaz de mapear

o coração.

 

Eu não sou mãe.

 

Às vezes, sinto-me indigna

de receber essa missão.

 

Nenhum corpo cresceu dentro de mim,

afora minhas personagens

e devaneios.

 

Sinto-me inferior por isso.

Como se o peso do mundo

não pudesse ter me tocado,

inteiramente,

pela gelidez do meu útero.

 

Tive inúmeras comprovações,

nesse ano do qual me despeço.

Sou pequena,

sou imensa,

fomos todos escritos,

ontem.

 

Tenho medo de não aguentar

o expurgo

que é necessário à evolução.

 

Prometo,

Contudo,

ser a mais atenta:

Ouvir flores e crianças;

Abraçar todos os verdes,

Meditar os azuis.

 

Anotar as palavras

Virgens à minha caneta.

Traduzir as marés,

Límpidas,

reminiscentes

 

Mas,

se já fomos declamados

Em saraus do Olimpo

Por que há tantas letras

(eu as conheço)

que ainda não foram ditas?

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