A Mãe e o verbo

“No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois.” Marilyn French

Eu nunca saberei se viemos da mesma linhagem de Deusas. Se fomos queimadas juntas, na Escócia. Ainda tentamos compreender como se deu a transformação fatal: de símbolos da sabedoria e fertilidade às primeiras pecadoras.

Uma das forças mais belas da Natureza, contudo, é a sincronicidade. Jamais saberemos como fazer essa magia: ela não está nos livros, nem se executa através das plantas curadoras. O Cosmos é quem nos presenteia com os encontros. Bruxaria ainda mais complexa que nossas próprias habilidades.

Não consigo me recordar qual era o propósito daquela festa, no prédio onde nasceu Santo António, no fim do ano de 2017. As festas, neste sítio, não precisam de justificativas. São redondas em si mesmas.

Lembro-me bem de quando o André, seu marido, chegou perto de mim para pedir um favor, inusitado. Logo atrás dele estava você. Não demorou um átimo de segundo para que viesse a primeira pergunta. Ah, mal sabia eu que essa pergunta certeira seria o início de uma amizade indescritível.

Você me ensinou que a música eletrônica pode ser o gatilho para uma espiral de ideias geniais, em plena Lux. Acredito que, através de mim, você tenha aprendido a ouvir meia dúzia de poemas, sem pestanejar.

De pergunta a pergunta, descobrimos tantas cousas juntas: a paixão corinthiana, os desvarios pelas noites paulistanas, o medo de habitar Lisboa. Depois de adulta, acho que só passei horas ao telefone contigo. Quase adolescência tardia.

Você me deu abrigo quando eu não tive casa. Ia, desesperada, limpando meus vestígios, minha bagunça, meus desamores. Entanto, antes de não ter casa, você me alertou que a irresponsabilidade me traria frutos traumáticos. Às vezes penso que, consciente ou não, você sabia que eu precisava passar pela dor, na jornada que conduz à maturidade.

Eu demorei meses para escrever esse texto. Primeiro, busquei as raízes cármicas da feitiçaria. Nas últimas semanas, estava à espera de encontrar inspiração na origem órfica do Universo. Hoje, percebi que só meu coração seria capaz de enaltecer sua presença em mim: sem bibliografia ou metáfora. Nunca precisamos disso.

Quando eu penso em uma palavra para descrever sua presença: mãe. Uma mãe igualzinha à do Universo. Você nunca foi mãe, mas é. Cuida das pessoas ao seu redor, com carinho e bondade inenarráveis. Embora não seja uma pessoa exagerada nos afetos. Severa ternura.

Sou testemunha de como você foi capaz de se relembrar como os astros dançam, apesar de jamais ter estudado a amplitude cósmica. Você já sabia de tudo. Conjunções, estrelas, mercúrios retrógrados. Como é que você sabe de tudo isso, minha amada?

Aceito suas perguntas, em vestes de ancestralidade.

Mãe.

A chuva de meteoros não veio ontem, como presságio que faltava para mim.

Mas há, aqui em casa, o sino da igreja. Ele toca a cada quinze minutos, impedindo-me de esquecer do sagrado.

Já faz tempo que busco o sagrado em tudo: nos códigos galácticos, na interioridade das águas, na condição de arrepio que percorre o corpo, ao meditar.

O sagrado se manifesta para além do milagre?

Sim.

O sagrado se manifesta, todos os dias, quando ouvem seus questionamentos.

Mãe, a mudez celestial é incapaz de controlar a sua luz.

Amo-te.

1 comentário

Arquivado em Textos meus

Uma resposta para “A Mãe e o verbo

  1. Melhor presente!!!
    Li, contemplando essa Lua Maravilhosa e iluminada!
    Tenho muito orgulho de você, pelo seu trabalho e pela pessoa que você é.
    Obrigada amiga amada!!!
    Te amo muito!
    ❤️

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