Arquivo do mês: outubro 2009

Porque eu o aceito, Vinícius

 

O amor por entre o verde

                                                                                                                          

Não é sem freqüência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns 13 anos, o corpo elástico metido nuns blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de-cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, 16, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.

 

Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num longo e meticuloso beijo.

 

Que será, pergunto-me eu em vão, dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos?

 

E se prosseguirem se amando, pergunto-me novamente em vão, será que um dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?

 

É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado… Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que freqüentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram.

 

E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas. 

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Um pouco de Mia Couto…

mia_couto 

 

Por que não me escreveste nunca? Não é de te ler que tenho mais saudade. É o som da faca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém. 

 

Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim. 

Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca. 

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As Pazes

O ser, quando faz as pazes com a matéria, invade galáxias, conflita com as divindades estupefatas. Não há nenhum entorpecimento mais carnal do que fazer as pazes. E longe da ideia do perdoar. São outras lágrimas de luz que o alagam. O perdão – infelizmente – hoje carrega as cruzes católicas. Tem sangue batido em suas pétalas.

Congraçar-se, por sua vez, nada possui dos confessionários. A penitência é anterior. E já encontra-se paga. Também ultrapassa verbos como desculpar-se. Que humanidade estabeleceu a anulação da culpa? Passado é sempre tatuagem. Apenas o olhar tem direito a óculos.

Ligar-se novamente a algo tem o cordão umbilical em cumplicidade. É a comunhão de dois seres errantes. Sejam eles corpo e alma, pai e filho, namorados, irmãos ou traumas. O enredo da história é o menos importante. É vergonha em parceria, sem dividir a dor pela metade.

Se me perguntassem qual é uma característica puramente humana, eu diria: fazer as pazes. Os bichos e o mundo são mais evoluídos neste aspecto. Uma pedra é passiva frente às ressacas marítimas. Não se angustia, submersa em fúria oceânica. Uma estrela cadente sabe que sua morte é consagração.

Nós, intermitentes dos deuses, perdemos a sabedoria milenar dos astros. Sentimos rancor. Arrancamos cascas de feridas quase cicatrizadas para o cruel derrame sanguíneo. Regurgitamos defeitos alheios. Muito provavelmente aqueles que mais nos assombram.  E temos tanto receio dos heróis! É com intencionalidade que inventamos mentiras, corrosivos que somos. Destruimos uns aos outros, frágeis imitadores das tormentas.

Contudo, é para dar as mãos que a vida vale a pena, novamente. Multiplicar em mil as ofensas e as dividir apenas em duas partes homogêneas. Saber que apenas um cúmplice invade as equipolências. Alcançar a paz é eternamente plural, mesmo que o outro esteja somente nas divinas criações do papel.

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Avessos

Há exatas três semanas ganhei um presente musical. Convidada por uma querida amiga do mestrado, fui prestigiar o talento e a leveza de Ceumar. Infelizmente não foi ontem. Não encontro-me imediatamente posterior àquela noite deliciosa. O olhar tilintou há mais tempo, aveludada ternura. Mas a nitidez da lembrança é hoje. Guardo debaixo de frágeis cadeados de brinquedo. E reservo o deleite com lentes do agora. Porque o momento é vívido hoje.

Sentamo-nos tímidas, minha amiga e eu, na multidão de fantasmas silenciosos. Confesso, apesar da inelutável melancolia do vazio, embriaguei-me com goles de orgulho, por fazer parte daquela pequenina plateia.

Foram algumas horas, apenas. Um enxerto na alma, diria. Mais os olhos meio verde-amarelo, a aura azul. Um transbordamento de estrelas formigantes. O corpo todo cheio de gratidão.

A voz dela enlevada pelo timbre dos risos. Íntima, seu enredo cobria-nos de pijamas perfumados em tangerina. “Conta suas histórias!” – dizia o público, abobadado em doçura. “Canta a nós sobre os rabos de cometa”.  Éramos sábios hedonistas a saboreá-la.

E veio a canção inesperada: “Por isso deixo aqui meu endereço, se você me procurar eu apareço. Se você me encontrar, te reconheço”. A letra, da poeta Alice Ruiz, é fruto de um mapa astral. Ela reconheceu a cantora em seu avesso cósmico. Ceumar explica, pois, em pureza de vagalume: muitos já se apropriaram da música, acreditando tratar-se de amor. E depois, sem intervalo, acha graça.

Desvanesci naqueles segundos. Porque minha obviedade já tinha tomado aquelas notas também. Era a banda sonora mais perfeita para definir a cumplicidade que carrego aqui dentro. Envergonhei-me, enfim, pelo sutil desdém que foi soprado. No entanto, como a perseverança é senhora em mim, não pude deixar para trás os devaneios.

O amor não dá certo em seu complementar. Em quase todos os casos, torna-se patológico. É uma grande heresia acreditar que os opostos vivem felizes para sempre. As extremidades são grandes estátuas, quando a Sincronicidade brinca com seus caminhos. O avesso, pelo contrário, é feito da mesma estampa.

Amar alguém é avesso de mim. Um dos dois precisa carregar uma felicidade insuportável dentro de si, que transborda e nos afoga com ela. Eu, todavia, sou das lágrimas. Tenho apreço por águas mais salgadas. Sou náufraga de um périplo menos colorido. Prefiro quando não dá pé.

O meu amor não poderia estar nos rios ou cachoeiras. Preciso dele perto, a tecer enormes castelos de areia. Sempre na praia, agasalhado por sonhos primaveris. Um amor que invente personagens com plumas e que odeie a morbidez fria. Eu sou toda voragem. Acredito piamente na lucidez das sombras.

Prefiro as madrugadas. Meu avesso necessita ser súdito do Dia. Só que, entre o céu e o mar, somos cúmplices. Desertamos as grandes fortunas. Abdicamos os feudos. Imensos desfiladeiros abrem-se para mim, a cada noite em que ele me deixa seu endereço.

Queremos muito espaço para divagar sobre cavalos alados. Por isso convidamos alguns peixes. Eles embarcam nossas sintonias pelos mares. Uma elite de entidades foi convocada para levar nossos recados. É engraçado isso – só o avesso tem telepatia.

Poderia passar horas infindas justificando meu ponto de vista. Mas aprendi com meu amor a guardar. Não sublimar ou neglicenciar. É simplesmente arcano.

Silencio nossos segredos. Contudo, maravilhada com a ideia de avesso. Esse amor, outro lado, trouxe a urgência dos versos de volta para mim. Como é linda a simplicidade do tecido! Porque eu era sonâmbula antes dele. Reverberava sonos que não recolhiam.

A voz de Ceumar estava, por fim, errada. As minhas fantasias estavam com as costuras expostas. (em algum momento de 2008)

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