Arquivo do mês: outubro 2008

Anuência

Esqueço-me, por vezes, a inesgotável e inaudível beleza das tuas madrugadas. Silenciosas. Sinto-me envergonhada, Lisboa, por querer tanto de ti e de tão pouco me doar. Insone, entorpecida, descabida… Não és tu, sou eu. Eu, este ser tão carente e tão solitário. Eu, repleta de perguntas que sempre voltam às mesmas interrogativas inexistentes. Eu, analfabeta do âmago de minha alma.

Peço-te perdão por todo o meu desdém. És linda! Tens o enorme coração cravado na Praça do Comércio, que deixa a noite com esplendidez. E como o coração é grande, ele me inunda ao pé da Avenida Liberdade, principalmente com a vista inconfundível de meu novo trabalho, à margem da esplanada, no Cinema São Jorge. Há um rio, digno de aorta. Um imenso oceano capaz de levar os pensamentos além-mar. Deixa imensas saudades nos olhos, quando procuro verdadeiros amigos. Periféricas estrelas apontam o triste Cristo Rei, fruto do descuido e da confiança perdida. Um dia foste permeada pela crença. Hoje há em ti a incômoda incerteza. Um não-poder-partilhar-segredos. Choro, junto contigo, quando há chuva. Sinto o teu vento a cortar-me sem piedade os lábios e o espírito intransigente.

Há dias em que acordo – ressoando as palavras de um amigo quase português – com tanto medo! A cama tem tentáculos. Firmes, rijos. Possuo uma estranha sensação. Gostaria de deixar minha raiz, colocar de lado minha nação – nação que com robustez idolatro. Cresci, ó cidade, rodeada por negros, pobres e anões. Nunca os diferenciei pela pele, pedigree ou altura. Não me peças para o fazer. Incapaz me torno, perante ao preconceito que rompe. A minha boca é pouco para descrever minhas dilaceradas pétalas. Cá sou cristal.

Contudo, pela incrível leveza dos diálogos aparentemente infrutíferos, percebo a soberania de escrever e de fazer terapia com as minhas letras. Agradeço a herança primordial – e tua. Ai, as lindas palavras de tua língua. À procura não estou de teus cidadãos plangentes. Minha jornada é canhestra. Existe um eterno ribombo dentro dos meus sentimentos. Dona de bálsamos, ungências e feridas. Mas dona, apenas eu e mais ninguém.

Não me deites fora. Digo isso para ouvir o conselho vindo de minha inteligência racional. Pude me deitar fora em muitas ocasiões. Na lixeira propriamente dita, em diarréias incolores, nos braços frígidos de um homem sem paixão, nos copos do Bairro Alto.  Recôndita. Minha face está enfim liberta. Contorno. Sorrisos impronunciáveis. A descoberta da vinda! Asperamente estou a retirar o curativo. O sangue não está mais grudado no branco e gigantesco pano. O sangue se calou. Não há renúncia da morada minha. Pinto em nanquim as esquadrias da percepção sublimada. Adoro-te. Os paroxismos estancados, por fim. O latejar que revive apenas ouvidos atentos. As orelhas fartas das mesmas ladainhas. Ladainhas imaginadas pela minha pobreza de sentidos.

Amanhã, quando o corpo estiver descansado, irei fazer uma visita enamorada em tua presença. Exaltarei as cores do sol que só pertencem a ti. Como as janelas dispostas do sótão, aceitarei os raios azuis e amarelos. Posso sonhar ao teu lado. Recolher-me no frio de teus porões também, porque a vida é feita de uma suculenta umidade. O negrume da lama e o calor do nosso pacto. Enoveladas pela sagrada, esfuziante conversação íntima. Eu e tu, Lisboa, anuentes. Tu em mim. Alagas em saliva, fragmento após fragmento, as horríveis nódoas de minhas roucas cordas vocais. És a mim um convite. Cerne meu. Órbita da missão. Nós duas, ambas inconclusas.

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Sobre as quedas (e os equilibristas)…

 

Todas as vezes que leio ou assisto a um filme bonito, choro. Não, não é um choro desesperado, desses que a gente não consegue engolir ou extravasar. É um chorar mais infantil. Remete-me às caidas não dolorosas de infância que, puramente por instinto, abrimos as portas marejadas dos olhos. E, particularmente, não quero o socorro inútil da mãe aflita. Quero apenas sentir-me humana, por uma fração de segundos. As lágrimas são só minhas e não há um compartilhar com nenhuma figura maternal – é unicamente o amor entre mim e o artista em questão.

Hoje elevo a audácia de falar de amor. Foi um chamado, depois de ouvir as confissões sofridas de amigos homens. Ambos terminaram agora relacionamentos que foram muito bonitos. Os dois, misteriosamente, oferecem-me o mesmo discurso: “foi a mulher que mais amei em toda a vida, o que eu faço com esse transbordar de sentimentos?”. Eu reluto em aceitar a idéia do amor (maior). E disse-lhes: grandes são vocês. Estão a amadurecer. Ainda não se permitem admitir, mas assobiam lindamente o envelhecimento. É claro que o amor fica mais uniforme, mais nítido. Há a sensação de ser o imenso, o mais depurado, o mais vívido. No entanto – peço-lhes desculpas por expressar minha opinião – é apenas o amor próprio que pôde nutrir paixões tão fora do ordinário. Está apenas em um e em outro a grande falta. O peito desses meninos carrega um vazio apenas fértil. Nada mais há neles.

Todavia, é em Valquíria ou em Silvana que colocam seus afetos. Contemplam suas dores e as dividem comigo – ainda não sei bem o porquê de ser eleita! Retruco, quase de forma dissimulada – pois também já morri dessas anomalias – que a responsabilidade de amar é nossa, absolutamente egoísta. Se houve um fim, certamente essas moças nunca serão as mais adoradas. São parte de uma infinda escada de estrelas. São um degrau, na bela evolução deles como seres humanos. A carne grita, nesse instante: “Como ela pode ser tão cruel? O nosso amor não é destinado aos objetos de encontro? O que eu faço com esse rasgar que minha pele permitiu? Meus pulmões estão ressecados pelo pranto…”

Meus delicados amantes, suplico-lhes que tentem agüentar este texto até o fim. Não deixem que a queda busque o aconchego primitivo de vossas mães. Guardem esse mentiroso penar que tem memória em nossas inocentes lembranças. Aniquilem a história do príncipe e da besta. A princesa faleceu. A fera é uma luta simbólica, mora cá. É uma interna que vagueia em nosso manicômio de pensamentos.  

Deixem os loucos bailarinos dentro de vossas almas, ainda em ferida. Ouçam as vozes de línguas estrangeiras. As que fazem estranhas reuniões dentro de nós. Aquele sussurrar que dilacera. Ignorem meus conselhos que beiram à petulância. Deixem-me, contudo, fecundar em solilóquios as palavras. O momento em que partilhamos confidências, vocês me deram o tema. E eu invoco os Deuses Ancestrais para escreverem por meus dedos as impressões que vos trago. Extraiam da terra molhada o ininteligível sentido do fim.

Eu vos prometo que cabelos mais cheirosos e sorrisos mais brancos aparecerão. Formas mais eufônicas, talvez menos redondas. O neoplatonismo saiu de moda. Enquanto o amor não chega, novamente, suportem que vossa animalidade reine. A comunhão é colheita, precisa de tempo e paciência. Mas, por favor, não se iludam. É mesquinho demais! Contudo, a capacidade de atribuir ternura não é altruísta. E exatamente por isso podemos amar autores, compositores, malabaristas sem nunca sequer estarmos em posse de suas presenças… O amor reside na narcísica corda bamba, da qual vamos tombar e recomeçar, sempre um passo a frente. Mais grisalhos. 

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Remanso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sempre me senti dona de uma esperteza inegável. Desde pequenina, estava eu, de pijamas ou de tranças, metida nas conversas adultas dos amigos de meus pais. Todavia, hoje eu me olho e me sinto frágil. Precária. Capaz de entrever meus ossos esmigalhados, em um tilintar de segundos. Não sei de onde tirei a estúpida idéia de ser espevitada…

Hoje ouvi ondas e esbocei um imenso sorriso. Era apenas a máquina de lavar, companheira heróica da minha jornada. Pois é, estou viciada em limpar minhas roupas. E sei que isso tem total relação com a regeneração da pele. Lavar dá toda uma nova possibilidade para a roupa existir, sem vestígios de passado incrustados na superfície. E eu sou eternamente o vestido, a meia e a camisa.

Tudo me tem sido difícil e tudo me tem sido sozinho. Absolutamente por escolha irremissível de meu coração. Ou por altivez da minha alma. Temos conversado muito a respeito de minhas atitudes. Em conclusões não falamos, até o presente instante. Eu agradeço ao poder divino do ainda não, desta vez. Porque estar em contato com respostas faria com que me sentisse detestável. Seria capaz de enfartar o fenomenólogo coração que carrego atrás do seio.

A solitude, como me disse um dia um grande amigo de infância, é composta de solidão com plenitude. Miserável sou, ao não conseguir de forma alguma alcançar essa tranqüilidade. Tenho vivido dias e noites “de cão”! Aliás, o entendimento dessa expressão me é impossível de ser tocado. Meus dedos se recolhem, quando pensam nela. Os cães, ao não pensarem em si mesmos, vivem a reluzente euforia da ignorância. Só os humanos têm ciclos infelizes e, ao mesmo tempo, possuem a ousadia de não se esquecerem deles.

Sinto, cá, a perecibilidade das relações. Não, não aceito a insolente resposta de que meu tempo aqui é pouco e que em breve revisitarei a busca tão sonhada da amizade. É outra cousa que transborda de mim. Composta de falta mesmo, de não concernir, de insônia. Por vezes a insônia é bela: o dia anterior ao acantonamento, a conversa que inunda as conexões nervosas, o porvir e seu maravilhoso universo de acontecimentos sonhados.

A minha anipnia é outra: “não porque morresse ou me matasse. Mas porque me seria impossível viver amanhã e mais nada”, diria o mestre Fernando Pessoa, em minha preferida poesia.

Não durmo. À espera de compreender o sentido mais íntimo de minha estadia. Não durmo pois eu sei que o amanhã não me fará uma ínclita cozinheira. Não durmo pois meus amigos estão adormecidos dentro do meu abstrato desígnio. Sempre tive, mesmo nas áureas madrugadas estelares, muito medo do repouso. Porque a vida passa numa velocidade muito maior do que minha ânsia de vivê-la. Então eu bebo vinho e respiro enfim ares cor de rosa. Aguardo Deus, para que ele abençoe meu sono. Permita que eu prossiga este tão áspero e açucarado crepúsculo. Conceda-me a escrita, só mais uma vez.

 

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Da Transcendência do Real

 

 

“Todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema” – Gaston Bachelard

O caixão passa despercebido pela multidão, inerte pelas imagens paralisantes de uma televisão. Uma criança – pois a infância é menos distraída – pergunta aos pais: quem é o morto? O pai responde, sem tirar os olhos entorpecidos: “É a literatura, meu filho. Ela não tem mais lugar nesse mundo”.

Já nos anunciava Ray Douglas Bradbury, escritor da história que deu origem ao belíssimo filme de François Truffait “Fahrenheit 451” (1966) que a televisão nos deixaria órfãos do prazer literário. Embriagados pelo imediatismo dos clipes, em poucos anos não só deixaríamos de ler, como passaríamos a repreender aqueles que quisessem passar horas solitárias em companhia de um livro.

As palavras podem soar extremistas, ou mesmo absurdas. No entanto, é inegável a metáfora. Até mesmo nossas refeições são apimentadas pelo televisor. Dificilmente uma pessoa passa um dia sem ligar o aparelho. Postas de lado, as pequeninas folhas tornam-se cada vez mais amareladas, esquecidas na cabeceira. O livro se tornou uma espécie de adorno, mais um item indispensável na decoração de uma morada.

E eis que surge um novo Titã, no duelo pela comunicação: a Internet. Os media electrónicos, presentes há muito pouco em nossa sociedade, vieram incomodar o sono tranqüilo do Gigante Televisivo. A rapidez das informações prestadas, a velocidade da divulgação, a criação de comunidades virtuais têm povoado o imaginário colectivo e dado novos rumos ao modo de transmitirmos mensagens.

Como não devemos discutir o que é inevitavelmente obsoleto – os perigos e fantasmas que rondam as redes virtuais – há de se pôr em questão as novas formas que a Cultura pode vivenciar, a partir da chegada dos meios não reais, não concretos de nos comunicarmos.

Hermano Vianna, antropólogo brasileiro especialista em Cultura, criou em fevereiro deste ano um site com o objetivo de descentralizar o conhecimento e divulgar as manifestações culturais dos estados do país. O site (www.overmundo.com.br) tem seu nome inspirado em um poema de Murilo Mendes:

“(…) Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante,

Que anda, voa, está em toda a parte

E não consegue pousar em ponto algum.

Observai sua armadura de penas

E ouvi seu grito eletrônico. (…)”

Nas palavras do próprio idealizador, dada em entrevista à Folha de São Paulo, um conceito fundamental para a actualidade surge – a generosidade intelectual:

“O que há de mais legal na internet foi produzido de forma coletiva com o objetivo de disponibilizar informação. Eu me sinto sempre em dívida, pois como eu já usei o trabalho de outras pessoas, que botaram informações e músicas de graça [na rede]! O Overmundo é uma forma de pagar um pouco dessa dívida. É cafona dizer, mas as pessoas estão dispostas a dedicar parte do seu tempo ao bem comum. É generosidade intelectual mesmo.”

Este fundamento torna-se a essência das intervenções universais electrónicas. Temos a obrigação de nos apoderar dessa disponibilidade. Navegar os sites de música para destruir as imposições das gravadoras. Gritar ao mundo quais são os artistas a quem queremos doar nosso reconhecimento. Viajar pelos blogs e compartilhar as solidões com nossos semelhantes. Viver intimidades a milhares de quilómetros. E assim, vislumbrar a possibilidade da Ressurreição Literária. A literatura não só é mais uma de nossas artes. É matéria pulsante da construção dos nossos pensamentos. Nas palavras do sociólogo polaco Zygmunt Bauman:

“Aprendi a considerar a sociologia uma daquelas numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam — após terem primeiramente processado e reinterpretado — a experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo do modo como essa experiência foi construída e pensada, e dessa maneira ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era “por direito” superior a outras narrativas, pois tinha de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição — assunto tanto da sociologia como das belles-lettres.”

O futuro, pois, pode brilhar novamente em nossas ideias. A revolução não palpável, a invasão do virtual no quotidiano pode ganhar formas mais bonitas e menos assombrosas. Temos a potência para utilizá-la em nosso benefício. O renascimento artístico deixa de ser latente. A cultura pode reinar, mais uma vez.  E especificamente a Literatura é uma necessidade nossa. Porque a realidade não existe, certamente. Nós a criamos todos os dias, ao lermos o universo com os olhares. Os escritores bem sabem disso. A eles é permitido transcender o irreal acesso ao conhecimento absoluto. A frase de Bachelard, posta no início deste texto, é enfim revelada. 

 

 

 

 

 

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As minhas meninas (mais trechos)

 

Porque você é a primeira e mais bela de todas: espelho da alma que desejo com uma robustez impetuosa. Doce e frágil, lembro-me de paranóicas quimeras que vivi ao imaginar um dia a sua ausência. Você que nada entende do que eu escrevo. Quiçá por ser loira ou talvez por procurar algo além nas minhas simples palavras. Não é tudo que provoca a dicotômica relação entre aparência e essência. Entendemo-nos tão bem que não há a necessidade de nos emaranharmos em textos. Nossa comunicação se dá de mãos em conchas, rodeadas pelas infinitas forças vindas dos protetores de Luz. E de você herdei o gosto pelo vinho. Bálsamo que tenho tomado com uma certa freqüência. O seu espírito, minha mãe, é feito de estrelas dionisíacas, não me restam dúvidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E a sua vinda deixou meu coração repleto de incertezas… Tristeza e contentamento, tudo misturado. Foi para você que roubei meu primeiro poema. Há em mim a certeza de que a sua chegada enobreceu minha carne, por inteiro. Primeiro por me apontar a beleza da ambigüidade. Depois por ser obrigada a tudo dividir. Deixei para trás a máscara rude de menina loba. Quantas piadas internas colecionamos! É a minha mais bela coleção de todas! E quantos olhares, gordos de cumplicidade. Alguns pulsos cortados, é claro. Porque viver às vezes fere mesmo. Mas são mutantes, esses pulsos cortados. Hoje nos mostram o charme das cicatrizes bem elaboradas. Dão a nós, irmãzinha, o alerta da melancolia sem sentido.

 

 

 

Sobrevivente do mesma tropa que eu. Tivemos alguns membros amputados nas batalhas ardilosas da adolescência. Mas, com uma força sobrenatural – mistérios são a parte mais bonita de envelhecer – eles tornaram a crescer. Mais fortes, mais definidos. Os músculos estão mais largos, as caminhadas aumentam em progressão geométrica em nossas existências. E há você aqui na minha idéia. A inútil incompreensão do seu não-adeus. Do seu recolhimento precoce, em meu último dia. (Preciso parar um instante). Só para fumar um cigarro, você me espera? Nem hesito em levantar. Sabemos do tempo de um cigarro e de toda a sua complexidade poética. A fumaça que limpa as nuvens fartas de tédio. Sinto falta de dividir minhas solidões consigo. Quantas vezes fui até a sua morada para encontrar meu colo? Irmã de alma, coração e cérebro. Aliás, quando você estiver aqui comigo, tomaremos juntas um cálice de novidades, decadências e literatura. Vem logo, amor!

Há você também, minha pequenina perseguida. Que acha meu amor displicente, vazio e distante. Você, que tem a docura mais contida, a agressividade mais inesperada, a disponibilidade de doação mais depurada que conheço. Foi a sua amizade que me ensinou a amar e me apaixonar todos os dias pelo Chico, a compreender o avesso da minha espontaneidade tresloucada. Você, organizada, prestativa, arrumada. Você compactada nos sentimentos, embora por dentro sejam gigantes deuses do Olimpo. Quantos abraços eu te roubei? Que apresentação de despedida mais linda, deste a mim. Que memória é essa, que você tem e teima em ignorar? Espero ter dado em você uma flecha certeira. Só envenenada de amor e aventura. Não quero seu estômago a reclamar do seu coração mais. Jamais.

Maninha: recordo agora aquele dia de fazer cópias dos seus documentos. Era um frio no ventre miscigenado ao inebriante sentimento de conhecer o mundo. E estava você aqui, há alguns anos. Como me fez falta! A minha melhor maquiadora, a minha conselheira de todos os momentos. Uma fada, capaz de virar de ponta cabeça quaisquer pensamentos pré-concebidos em futilidades! Dona da inteligência mais sensível que conheci. Do melhor de todos os cafés. Senhora de olhos de pôr-do-sol. Quantas madrugadas foram testemunhas do nosso pertencimento imediato! Como é bom saber-me da sua família. Mando daqui longas vibrações de borboletas. E imensos suspiros amarelos. Senti a soturnidade de não passar consigo a celebração do seu ano novo astral. Mas celebrei cá também. O grande milagre do seu nascimento.  

 

 

 

 

 

 

 

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Ao inventar verdades

 

 

 

 

 A minha ausência cibernética deixa os dedos tímidos ao lançar esse texto. Escrito à mão, ele já me parece distante, já se encontra quase rudimentar… Sim, digo quase porque seria uma enorme mentira alegar que Paris não povoa mais meus pensamentos.

 

Escrever à mão é algo que perdi o hábito. Minha letra já está totalmente debilitada, depois de tantas teclas apreendidas pelos meus punhos. No entanto, neste horrível período de adaptação, é preciso ter a versatilidade de um ser camaleônico. Não posso deixar de escrever. A loucura ronda-me, insistente e sedutora.

 

Voltar a Lisboa depois de uma semana indizível em Paris me soa insuportável. Aparentemente insuportável. Tudo cá me é estranhamento. Exceto o anafalbetismo, tudo o que me circunda e que respiro dói.

 

Foi num sábado, enredado de esperança, que embarquei no avião. Já estava ciente da minha escala em Madrid. Não houve em mim nenhum tipo de desconforto. Para estar perto de quem se ama, na cidade do Amor, não pode haver mumunhas.

 

E subitamente, no trajeto insustentável entre a decolagem o pouso, deparei-me com um pensamento que há muito persevera minha estadia além mar: será que finalmente encontrarei a familiaridade almeijada por minh’alma? Muito fantasiei as palavras de minha mãe. Ensandecida pela cidade Luz, ela foi capaz de percorrer as ruas, em sua primeira visita, como se um sopro estivesse sempre ao pé do ouvido. Lágrimas teimavam em deixar seus olhos, tontos de estarem em casa. Eu infantilmente vislumbrei essa fantasia, ao aterrisar em Portugal.

 

Para a minha infelicidade, a cidade não me trouxe o aconchego de vidas passadas. Era apenas, como Pessoa, uma estrangeira. Pássaro assustado que cai do ninho. Frágil, frente à frigidez do povo, às duras palavras, ao sotaque incompreensível. Uma nação que teve o mais glorioso dos passados, mas que teme seu futuro, intocável. Não há gerúndios em Portugal: ‘estou a comer’, dizem. A língua parece ter sido congelada. Fóssil triste como as tartarugas.

 

Pois bem, voltando a Paris, pois é lá onde encontra-se minha memória agora. Adentrei as terras francesas com o imenso desejo de retornar à minha morada. Depois de pegar a mala, todo um desespero tomou-me conta: onde está o meu amado? Quase duas horas depois, o alívio! Não havia morrido, como minhas idéias obrigavam meu coração a sentir. Era apenas um atraso. Costumeiro. Eu já havia me esquecido dessa característica, irritante e inofensiva de sua personalidade.

 

A minúscula casa, colocou dentro de mim a urgência de descer as escadas e ir ao encontro da cidade da minha mãe. De bicicleta, como se um filme fosse minha própria vida, avistei a famosa torre. Ela piscava, saudando-me.

 

Chegamos, por volta da uma hora do novo dia, no apartamento do amigo russo. Tudo me era lindo e novo. O olhar primeiro foi meu grande companheiro de viagem. E de repente, posta em um emaranhado de línguas-bebidas e música, sentia-me aquecida por todo o ambiente. Sentei-me, envergonhada, só por um breve suspiro. Não há lugar para estranhezas, aqui.

 

E ao ouvir o som da Balalaica, instrumento da típica música russa, aconteceu aquilo que tanto esperava. O choro recém nascido, o choro de reconhecimento. Aquele som invadia todas as minhas coragens, entregues a Deus. Ah, minha ascendência polaca! A alma brasileira também pode ser alcançada a menos de quarenta graus.

 

Os dias subseqüentes não cabem em minha literatura. Les Invalides e o monumental túmulo de Napoleão. Quase trezentos degraus e ter a invasão de Paris pelos olhos, no Arc de Triomphe. Setecentos degraus de metal. Um elevador até o topo. Um medo que nunca havia habitado antes meu ectoplasma. A altura de duzentos e setenta e seis metros do solo. O mundo e La Tour Eiffel me diziam, enquanto eu tentava me apoiar em nuvens, embalada pelo iminente delíquio: ‘É Mariana, a sua pequenez insignificante…’

 

Tomar um vinho no Château du Versailles. A cada gole entornar a anistia. A nobre inutilidade da vida valia uma cabeça decapitada! Ter também a alma totalmente conectada aos egípcios extraterrestres, no Musée du Louvre. Poder morrer no mesmo instante em que meus pés pisaram o Jardin du Luxembourg. Dar um oi a Baudelaire, a Simone de Beauvoir, Sartre, Beckett, Julio Cortázar. Não encontrar Durkheim e ser absolutamente irrelevante… Encharcar-me de música no Champs de Mars. Encontrar a igualdade da Morte nas Catacumbas. E ver que não há morte do corpo na igreja da Rue du Bac. Ter vontade de trabalhar no Pompidou… Sentar no parque mais lindo do mundo e presenciar a ressurreição de um peixe. Ser testemunha de infinitas paisagens. Dormir e acordar abraçada pelo Amor. Andar pelas glamourosas ruas e isso simplesmente bastar ao espírito. Uma vida vale uma semana em Paris.

 

Tomar vinho e fazer um sarau, apinhada por pessoas de todo o Planeta Terra. Aprender o que verdadeiramente significa ser cidadão do mundo. Realizar o sonho sonhado e este ser ainda mais belo do que em mim foi devaneio. Ouvir russos cantando em Português e ver que eles pertencem à minha terra. Tanto quanto eu pertenço à Polônia? Não posso dizer… Esse é o grande segredo literário. É o grande poder da palavra. Sentir ou inventar felicidades. Inventar sincronicidades é o dom-ápice do poeta. O que é genuíno em liberdade. A invenção também é verdade para quem escreve”.

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