“Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.”
Paulo Leminski
Se eu pudesse ter escrito a nossa história – e não a vida – traria a tua vinda em trajes de outono. Aparecerias, esquisito, pulôver e cachecol, em noite fria de maio. Oferecerias três garrafas de vinho português para a mesa, acompanhadas de queijo gruyère.
Virias, daquele jeito, pedante, a cumprimentar os amigos em comum. A sala se envaideceria em tua presença? Ah, delírio de um acontecimento inigualável! Aceitarias – como quis a vida – que tua mesquinhez fosse abafada pelo entorpecimento. Era apenas a alegria de estarmos juntos.
Sentarias, ao meu lado. Eu, inebriada pelo tilintar das brasas. Tu, à espera de que me lembrasses de ti. Mal sabias, quisera eu – não a vida – que possuo essa mania estúpida de me entregar aos lugares, em detrimento dos seres humanos.
Se eu pudesse ter escrito nossa história, antes da vida, teria suspendido as cicatrizes que amarguram tuas dores. Vivenciaríamos as borbulhas primeiras, virgens na pele.
Borbulharíamos, únicos. Estrada que somos e que nos contorna a solidão.
Não suporto apadrinhar os horrores que não me foram, meu amor.
Contudo, ao escolher o nosso beijo, em literatura, eu abdicaria de todos os clichês.
Excluiria ternuras.
Desprovida de obviedades, vestir-me-ia de ti, em camisetas e gatos e cigarros.
Afastada de quaisquer ninharias, terias-me sido, como em vida: transeunte, impermanente, indubitável. Tu, se alcançasses a narrativa, acontecerias do mesmo jeito: inesperado.
Se eu pudesse ter escrito a nossa história – e não a vida – ainda degustaríamos aquele restaurante japonês, digno de filme. Escandalizaríamos os silêncios, em madrugadas juvenis. Mendigos, em cada dose de gim, ou de cólera.
Em mim, a tua existência segue mais bela. Se eu pudesse ter-nos escrito, não seríamos nós, amor. Seria literatura.
A vida, se me deixasse, teria enaltecido cada momento vão, como se escolhesses o carro errado e tudo fosse motivo para rir.
A vida nunca coube nas horas que tivemos, nem na minha escrita mais bonita.
Tu não dormiste em verso nenhum…
Onde auscultaram tua partida, amado?
Se eu pudesse ter escrito nossa história – e não a vida – jamais negligenciaria teus tormentos de menino. Minha poesia aguentaria tuas errâncias invisíveis.
Ah, inveja da vida que me escreveu a tua história!