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O fardo do poeta

Graça e Desgraça*

Otto Lara Resende

RIO DE JANEIRO, 20/04/1992 – Tendo mais de uma vez escrito sobre a sina do poeta, nem sempre fui entendido como queria e esperava. Não sou poeta, porque não tive o dom, que é dado de nascença. Nem por isto deixo de reconhecer a importância da poesia para a cultura de um povo. E até para o destino da humanidade. Sou do tempo em que se dizia que o mundo precisava mais de poesia do que de carvão. E também que, se o mundo tivesse de ser salvo, por certo o seria pelos poetas.

Nem por isto deixo de reconhecer que a sina do poeta, a sua sorte, não está entre as mais desejáveis, sobretudo num século que cultiva acima de tudo o conforto dos bens materiais. Para confirmar o que digo, posso me valer do testemunho de muitos poetas. Escolho um, pela eloqüência com que se pronunciou a respeito. Trata-se de Paul Claudel. Poucas pessoas são capazes de suportar a vocação artística, diz ele. A arte é perigosa para a imaginação e a sensibilidade.

Basta ver a maior parte dos poetas. Dão às vezes um espetáculo de completo desequilíbrio. São vidas freqüentemente frustradas. Até Chateaubriand e Victor Hugo foram vítimas de um profundo desequilíbrio. Os poetas não têm a paz dos homens de ciência. Ou dos homens de ação. Um Pasteur e um Lesseps se realizaram num êxito saudável. Foram vidas felizes. Já poetas, e escritores também, conhecem experiências dolorosas. Quem gostaria de ser um Baudelaire ou um Verlaine?

O martirológio dos artistas é mais que exuberante. E não falo dos poetas malditos, que a meu ver constituem um enigma. Ninguém em sã consciência pode desejar para si ou para um filho a vocação artística. Marginal, nada tem de atraente. Penso na minha irmã Camille. Graça terrível, o poeta aparece neste mundo sem graça por um decreto dos poderes supremos. É o que está em Baudelaire. Será que o mundo sentiria falta de Verlaine, se não tivesse existido?

Nenhum pai de família é bastante louco para desejar ao filho a vocação de um Rimbaud. Quem poderá dizer que a vida de Gide foi desejável? Ser poeta é mais ou menos como ser médium. Vivem de si mesmos, do seu equilíbrio. O artista vive à procura de sua essência, quase sempre voltado para os lados negativos e não para o lado bom. Veja o caso de Proust. Haverá vida pior do que a dele? Até aqui, é Claudel quem fala. Um poeta, pouco importa o que dele se pense.

*A foto é de Fernando Ricci, no Sarau Mundano de junho/12.

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Vista Cansada

Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía – e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

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