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Pierrot

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“Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos têm a cor de água) e sorri com o mesmo beatifico sorriso de seu bisneto recém nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero.”

– Eduardo Galeano em O livro dos abraços.

 

Uma caixinha de música, às vezes, dá corda a mim.

A poesia gorda me envaidece com seus versos, perfeitos.

Eles vêm, sonhos oraculares,

em cores de Van Gogh e voz do Salvador.

 

É difícil dar-lhes nomes,

ou decidir o primogênito.

 

Gostava de morar na beleza primeira que tem as letras,

antes da oração.

 

Uma boneca antiga visita-me a infância.

Faz do passado uma colheita de outono.

 

Uma caixinha de música,

às vezes,

dá cordas em mim.

 

Manipula meus títeres anteriores.

E vai-se embora como a nuvem derradeira

que insiste em acariciar o Tejo.

 

Uma caixinha

de música,

às vezes,

desperta o pierrot aprisionado no brinquedo.

 

Dilacera as dores cicatrizadas.

Dá risada dos projetos juvenis.

 

No dia em que a caixinha de música for abreviada pela obviedade,

talvez seja feliz.

 

A memória,

Poética,

é sempre lapso

dos possíveis futuros.

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Janela sobre os seres e os fazeres…

“A pele da passadeira de roupas é lisa.
Longo e pontiagudo é o consertador de guarda-chuvas.
A vendedora de frangos parece um frango depenado.
Brilham demônios nos olhos do inquisidor.
Há duas moedas entre as pálpebras do avarento.
Os bigodes do relojoeiro marcam as horas.
Têm teclas as mãos da secretária.
O carcereiro tem cara de preso e o psiquiatra, cara de louco.
O caçador se transforma no animal que persegue.
O tempo transforma os amantes em gêmeos.
O cão passeia o homem que o passeia.
O torturado tortura os sonhos do torturador.
Foge, o poeta, da metáfora que encontra no espelho.”
Eduardo Galeano

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O país dos sonhos

Eduardo Galeano
Era um imenso acampamento ao ar livre. Das cartolas dos magos brotavam alfaces cantoras e pimentões luminosos, e por todas as partes havia gente oferecendo sonhos para trocar. Havia os que queriam trocar um sonho de viagem por um sonho de amores, e havia quem oferecesse um sonho para rir a troco de um sonho para chorar um pranto gostoso.
Um senhor andava ao léu buscando os pedacinhos de seu sonho, despedaçado por culpa de alguém que o tinha atropelado: o senhor ia recolhendo os pedacinhos e os colava e com eles fazia um estandarte cheio de cores.
O aguadeiro de sonhos levava água aos que sentiam sede enquanto dormiam. Levava a água nas costas, em uma jarra, e a oferecia em taças altas.
Sobre uma torre havia uma mulher, de túnica branca, penteando a cabeleira, que chegava aos seus pés. O pente soltava sonhos, com todos seus personagens: os sonhos saíam dos cabelos e iam embora pelo ar.

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