Arquivo do mês: abril 2022

Intrusa

Para Alice, Pablo e Lalá

Deixo a portaria para trás, pela primeira vez, a pé. É antevéspera de Natal. A missão parece árdua. Chegar à loja de brinquedos, no turbilhão de Pinheiros. Certifiquei-me de que poderia ir, sem prévias marcações. O apocalipse nos tirou quase tudo: até as ínfimas espontaneidades.

Pela rua dos Macunis, homens ajeitam calçadas. A temperatura varia entre o calor insuportável e os presságios de tempestade. Lembro-me do mendigo poeta, hermético, que habitava minhas manhãs, antes da escola. Será que sobreviveu ao covid?

Atravesso a Pedroso de Moraes, com as mesmas angústias juvenis. Só de revisitar as memórias adolescentes, exacerbadas pelo prédio horroroso da Escola Palmares, meu coração pulsa entre recuperações de química e esperanças envelhecidas.

Conheço esses caminhos de cor. Na Deputado Lacerda Franco me esbarro em pulseiras de missanga, com o nome do primeiro namorado, na calçada da Cultura Inglesa. Subo a Teodoro Sampaio, entre os olhares escancarados dos compradores.

Será que todos nós sempre usamos máscaras?

A cada esquina, espanto. As nostalgias vão me entorpecendo, em reminiscências doces, em tragédias de outras encarnações, em promessas não cumpridas.

Meu destino está à esquerda, diz a narradora do mapa, em português de Portugal. Essa loja de brinquedos que reside há mais de quarenta anos, no mesmo sítio.

Os trenzinhos e adornos de madeira deram lugar às princesas congeladas. Eu já não suporto pensar na sofreguidão das princesas de outrora, reprimidas. As crianças merecem protagonistas, acordadas para as mazelas do mundo. Optei pelo teatro de fantoches, com bordados de Oz. Pelo menos Dorothy teve amigos incompletos, em sua jornada.

No retorno à Praça do Pôr do Sol, uma vez mais, recuso as recusas dos motoristas do Uber. Acho que hoje não suportaria ser recusada. Meus pés, já famintos por um escaldão, são os únicos impedidos de me desabrigar. Não há como cancelar os próprios caminhos.

Essas ruas voltam a me convidar ao sonho, às fugidas da escola, às madrugadas no extinto Sujinho. E São Paulo, por alguns instantes, não dói.  

Pedi muito à Universa uma viagem de poesia e pertencimento. Os dias, entanto, têm sido dolorosos e inexprimíveis.

Às 17h15 abro a porta do apartamento dos meus amigos – em viagem pernambucana. Conheci-os há exatos dez anos, em Lisboa.

Rosa, a gata, finalmente aceita o carinho. Convida-me a ver as bonecas da Lalá, sua irmã humana. Fala-me, miando, em saudades da sua família. Trocamos sua ração. No chão frio da cozinha, estamos ambas de barrigas para o ar.

Nesta vista lancinante, tão paulistana, o dilúvio se aproxima. Há amor nessa casa. Fotos, livros, baba ghanouch na geladeira.

E o amor, às vezes, parece-me o único porvir. 

Deixe um comentário

Arquivado em Textos meus