Arquivo do mês: janeiro 2010

Corrigindo a vida

Há temor maior que a abertura de um livro? A surdez que antecede o espamo. Aquele momento fugidio – e para tantos sem nenhuma importância – em que se dilacera a capa? Existe alguma taquicardia superior ao deflorar açucarado desse rompimento?

Pois bem, eu cresci sentindo essa emoção. Cada página mergulhada me foi mais importante do que beijo de namorada. Por muito tempo, senti-me um estrangeiro de mim mesmo, um foragido do planeta, caminhante de muletas.

Olho hoje para tudo o que se considera mundo e me choco. Agora, agora que tenho pessoas em minha posse, agora que há relações verdadeiramente humanas pulsando dentro das minhas emoções, questiono-me sobre o meu teórico aprisionamento.

As pessoas que passam por mim – ao contrário dos meus esféricos personagens de outrora – são cartões postais de si mesmas. Paisagens magistrais, mentiras fotográficas, sóis em brasa sem luz alguma. Todos com um estarrecedor medo de viver.

Empiricamente, vejo que não há depressão, bipolaridade, ansiedade ou esquizofrenia. A maior patologia de todos é a própria vida. Pavor ao câncer, ódio à pobreza, ojeriza à criminalidade. Medo de matar, medo de morrer, medo da loucura, medo de desvelar a verdade. Medo do adoecer. E é tão devastador esse medo de viver que o medo torna-se invólucro do enfermo. E se morre, literalmente, de tanto se pensar na iminência dos perigos.

Dir-nos-ia o mestre Guimarães Rosa que o viver é muito perigoso. Quantas vezes fui acusado de covarde, pela escolha da literatura! Eu? Eu que naveguei por abismos impossíveis, por angústias algemadas. Eu que não recolhi os pulsos, para não esconder os quelóides do suicídio fracassado. Eu que dormi ao relento, acompanhado de seres inumanos. Fui, inerte, o grande protagonista dos anoiteceres da alma! Eu e os meus autores. Testemunha da única verdade. Porque escrever é ter a nudez tatuada.

Em minha casa não entra ninguém que não tenha sido convidado. Na minha cama só há espaço para volúpias. As mulheres dos meus devaneios têm lábios mais maduros e seios desprovidos de consertos mesquinhos. E as páginas me engravidam de vocabulários e sonhos e sentidos redondos. E, às vezes, eu declamo minha cumplicidade para impregnar minha sala em amarelecidas fumaças. Inebrio-me com o gosto mofado dos anos. E durmo tranquilo porque o amanhã me reserva o inefável.

Sim. Eu só posso ser o farol que se arrisca frente às tempestades porque me nutri em coragens escritas. E saio pelos papéis pulverizando insanidades e encorajando mentecaptos. No entanto, há mais veracidade em mim. Eu, Scott Johnsonn, temerário analfabeto da vida.

Afinal, quem é  letrado em viver? Vocês, com suas fobias, suas alergias ao oxigênio? Vocês, mais sujos que os mendigos? Mais vis que as meretrizes? Vocês, atordoados por ressacas morais! Por inúteis amnésias alcoólicas? Com o receio tedioso de soltar o ignóbil que os corrói por dentro?

Vocês, agorafóbicos que são! Ressecados pelo horror à chuva. Invencioneiros sem bússola. Infames pelas próprias castidades. Como se os deuses estivessem preocupados com seus pecados mínimos. Acham mesmo que os deuses explanam a pureza?

Eu cresci com os mitômanos abençoados. Homens e mulheres que corrigiram a vida através de suas inventivas narrações. Delirantes, fracos, derrotados. Imperfeitos. Mas que puderam transmitir esse impalpável fiapo. Que cicatrizaram sua inconsciência ao tecer oraculares linhas em sinceridade. Porque o outro, espelho do avesso, anestesia todas as essências. E é a literatura – de quem lê e de quem aceita ser hospedeiro – é ela a mãe das nossas terras.

Parem! Chega dessa repulsa a mim! Eu, como todos aqueles que des-cobrem os signos dessa humanidade, sou incapaz de dissimular. Transparente como são todas as infâncias. Descrevo minhas mazelas. Rasuro-me. Reviso-me. E sei. Jamais abrigarei o ponto final.   

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Álvaro de Campos veio ter comigo

 


Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa   
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,  
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;  
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha  
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:  
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,  
E romantismo, sim, mas devagar…). 

Sinto uma simpatia por essa gente toda,  
Sobretudo quando não merece simpatia.  
Sim, eu sou também vadio e pedinte,  
E sou-o também por minha culpa.  
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:  
É estar ao lado da escala social,  
É não ser adaptável  às normas da vida,  

Às normas reais ou sentimentais da vida –  
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,  
Não ser pobre a valer, operário explorado,  
Não ser doente de uma doença incurável,  
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,  
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas  
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,  
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor. 

Não: tudo menos ter razão!  
Tudo menos importar-se com a humanidade!  
Tudo menos ceder ao humanitarismo!  
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela? 

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,  
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:  
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,  
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte. 

Tudo o mais é estúpido como um Dostoièvski ou um Gorki.  
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.  
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente  
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece. 

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,  
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim. 

Coitado do Álvaro de Campos!  
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!  
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!  
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,  
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,  
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele

Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!  
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! 

E, sim, coitado dele!  
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,  
Que são pedintes e pedem,  
Porque a alma humana é um abismo. 

Eu é que sei. Coitado dele!  

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma! 

Mas até nem parvo sou!  
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.  
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido. 

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! 

Já disse: sou lúcido.  
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.  
Merda! Sou lúcido.

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Alento para o Desassossego

Bernardo Soares/Fernando Pessoa

242.

À parte aqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das alfurjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida, o que [de] ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que com esforço, reconhecer nos seus recantos!

A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade.

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Despertares

“Todo o caso de loucura é porque alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta” Clarice Lispector

A loucura invade a galáxia, irrompe a atmosfera, atravessa estradas, violenta a casa e o atinge. Não. A loucura estava dentro, hibernava profunda dentro dele. Acorda ainda sonolenta, os olhos bem devagar alcançam as luzes e dão formas às coisas. O rosto ainda inchado daquele sonho de séculos. Depois do seu despertar, todavia, não há volta. A loucura tem os ouvidos atentos para a ruidez do piscar de olhos do seu hospedeiro. Ah, todos os silêncios preparam o estourar das ondas!

Parasita, a loucura se deleita nessa terra de ninguém que é o homem. E a pobre vítima se desespera, esperneia, vocifera, quer matar, quer cometer suicídio. A estranheza se apossou do espectro e não há nada – só o tempo? – que o permita sublimá-la.

Hipocrisia tamanha em assombrar-se com o âmago! Porque o louco não é avesso ao mundo. O louco não é manicomial. A vida só está pulsando em ritmo acelerado e se enxerga demais. O louco toca seu vazio fértil, engole todas as possibilidades de uma vez e não as digere.

Não há íris que suporte essa nitidez horrível que há em cada pedra.

Uma vez insano e acabou. É um gole para contaminar toda a existência. Não há cura. Mas há a arte que fagocita. E há também a intersecção das realidades. É no outro, cúmplice, hospedeiro insone. A noite pode avizinhar-se em calmaria. Desde que exista um e apenas um ser humano que confesse em mudez. As palavras não libertam a loucura. Também já estive adormecido.

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Amor Inconcluso

 

Ana galgava devaneios enquanto a máscara negra ia cobrindo seus cílios compridos.  De sua mão escorriam gotas imperfeitas, repletas de cólera e temor. Encontrava-se horrorizada pelas sensações que assombravam o espírito, naquele instante. Ana já não galgava – lenta em sua exatidão – cada uma das lembranças que a acalentaram a alma após aqueles quase trinta anos.

Como ressurgia assim, meu Deus?! E por qual razão, agora, vinte e sete anos depois? O incognoscível sabor da possibilidade ia surgindo ansioso em sua boca, já pintada de vermelho sangue – e como era óbvia, na escolha do batom! Às vezes a obviedade insurge para dar nuances ao real.  

Vinte e sete anos. É uma vida! Toda uma encarnação em ausência. Repousara em recordações durante todo esse tempo? Fora escrita de novo, na casa da memória? Nada. A existência havia entardecido rapidamente, como se fosse abrigar um dilúvio.

E por que a sincronicidade ri dos seus sentimentos depois de vinte e sete anos? Não guardaria mais tudo aquilo que a imaginação construíra? “Sou apenas uma prosódia que precisa se aconchegar à melodia?”, refletia estupefata. 

A senhora de quarenta e nove anos incutia a imagem no espelho. A velhice não chegara em decrepitude, como acontecera com a maioria das amigas dela. Embora precisasse de uma cinta modeladora para apaziguar as formas no vestido, havia uma beleza ainda pueril no desenho dos seus ombros. Enquanto o corpo envelhecera, os ombros permaneceram intactos, resguardando as saboneteiras salientes. Era seu resto de infância traduzido na ossatura.  

Era tão fácil para ela entender a aparente imortalidade dos ombros. Porque uma vida sonhada fora muito mais bela. E os ombros não suportaram jamais as dores da velhice. E tudo para Ana havia sido leve e sonhado e puro. Até o momento em que atendeu ao telefonema do amor devaneado.

Por que atendeu ao telefone? E por que ele liga, justo hoje? “Já tivemos tantas oportunidades de nos cruzar pelas calçadas! Quantos aniversários de amigos em comum fui, à espera de reconhecer o seu olhar quente, desértico. E o destino jamais quis o nosso re-encontro!”

Justo hoje ouvia um “eu te amo” desesperado. Como assim? “Vamos tomar um café na livraria onde nos conhecemos?” ele disse, animado. E ela, estarrecida, disse que sim. É claro que sim. E agora, com a maquiagem pronta, os cabelos tingidos, as mãos feitas, a cinta disfarçando a barriga, agora já não sabia se desejava destruir todos os sonhos com esse mísero café.

Esse século que os separou a alimentou. Amor inconcluso. Ah, quantas noites não vividas tiveram o gosto indecifrável da ventura! Como ela fora resiliente, frente a todos os infortúnios, só por ter trancafiado apaixonadas fantasias! E de seu sono imperturbável nasceram todas as defesas contra as enfermidades mundanas. E tudo estava correndo o risco de ser acabado.

Seria inelutável? Havia uma robustez tão grande de espírito, por todos os futuros inventados! Um amor sem molduras, rebento em larguezas juvenis. Amor que dorme ao relento sem precisar agasalhar-se. Há maior amor que o amor imorredouro?

Num esforço de lembrança, Ana velava as sobrancelhas do amado. Passava pela sua barba imponente. Ressuscitava cada centímetro dele. Ela sabia de cor suas unhas redondas. E sabia de cor as cutículas pesadas de carne. Porque teve uma enorme tristeza em vê-las partir.

Indelével. Fora assim que a inconclusão pousou em Ana. A fortaleza do vir-a-ser em quimeras lhe cobrira de esperanças para inúmeras vidas. Como o que ocorre com os escritores, ela havia dado a si mesma o presente da invenção.

A curiosidade mesquinha sobrepujaria sua insana recordação? Porque, para ela, ele tinha a alma aberta como o mar em noite de ressaca. Seria capaz de aniquilar uma imagem tão bela e tão inumana como esta? Haveria ele envelhecido normalmente? Com preocupações estúpidas? Com questões triviais? Mas se ainda a amava, poderia ter se transformado num completo imbecil? Ele navegou com ela por canções inebriantes. Mastigaram juntos os mais belos pores-de-sol.   

Não. Não ousava descrever em palavras o que efetivamente havia acontecido. Todas as vezes que se submeteu à confissão desse amor, partiu-se ao meio. Ninguém a entendera. E nem era para ser entendida. Seu amor era monolítico. Os rastros ficariam estampados nas gavetas, escondidos nas paredes embranquecidas, encerrados nos abraços perigosos.

Ana acendeu um cigarro. Sentou-se na cadeira de balanço. Invocou a presença de Chet Baker. Preparou um copo de uísque sem gelo. Recolheu toda a bagunça que estava para fora dela. E esperou a noite chegar. Satisfeita. O sangue não partiria de suas mãos. Ana era grata por não ser uma assassina de irrealidades. 

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Uma Experiência

CLARICE LISPECTOR in A DESCOBERTA DO MUNDO

Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e, por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me foi negado.

Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.

E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podem agradecer. Então eu, o tigre, dei umas voltas vagarosas em frente à pessoa, hesitei, lambi uma das patas e depois, como não é a palavra o que tem importância, afastei-me silenciosamente. 

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Apneia: Poética do Devaneio

Gaston Bachelard, mestre

“Todas essas luzes psíquicas dos nascimentos esboçados iluminam um cosmos nascente que é o cosmos dos limbos. Luzes e limbos, eis a dialética da antecedência do ser de infância. Um sonhador de palavras não pode deixar de mostrar-se sensível à doçura da palavra que põe luzes e limbos sob o império de duas labiadas. Com a luz, há água na claridade e os Limbos são aquáticos. E sempre haveremos de encontrar a mesma certeza onírica: a Infância é uma Água humana, uma água que brota da sombra. Essa infância nas brumas e nas luzes, essa vida na lentidão dos limbos, dá-nos uma certa espessura de nascimentos. Quantos seres temos começado! Quantas fontes perdidas que no entanto têm corrido! Então o devaneio voltado para o nosso passado, o devaneio que busca a infância, parece devolver vida a vidas que não aconteceram, vidas que foram imaginadas. O devaneio é uma mnemotécnica da imaginação. No devaneio retomamos contato com possibilidades que o destino não soube utilizar. Um grande paradoxo está associado aos nossos devaneios voltados para a infância: esse passado morto tem em nós um futuro, o futuro de suas imagens vivas, o futuro do devaneio que se abre diante de toda imagem redescoberta”. p.106-107

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O colecionador de saudades*

colecionador de saudade1

colecionador de saudades2

Eu gostava mesmo de escrever em terceira pessoa. No entanto, tentei e foi um bocado frustrante. Acho que ainda trago a própria vida embutida no coração do pensamento. E isso passará, com o rebentar dos anos.

Chamava-me Manuel Leite de Barros. Tenho vinte e dois anos e decidi dar um fim a mim mesmo. E não, não cometerei suicídio. A morte não tocará meu corpo, embora eu vá matar a mim durante essas páginas. Porque estou farto de ser eu.

Desde miúdo sinto-me um estranho em casa. É tradição em minha família colecionar. Meu pai possui uma coleção de bulas de remédios. Obviamente, trata-se de um inveterado hipocondríaco. Ele cataloga todas as descrições medicamentosas em ordem alfabética, dividindo-as em doenças. E orgulha-se imenso de ter mais de dois mil papéis ordenados em uma pasta castanha.

Minha mãe desde sempre foi apaixonada por corujas. Para ela, mais que símbolo do saber, as corujas são as grandes amantes da noite. “Com certeza a sabedoria acontece na escuridão”, diz-me repetidas vezes. Hoje, sua coleção já transborda doze estantes e ultrapassa quinhentas réplicas de todos os formatos, regiões e cores.

Até mesmo uma prima que mora no Brasil é viciada em coleções. Ela armazena todas as palavras bonitas que lê nos jornais. Por dia são escritas em seu caderno cerca de cento e doze novas aquisições.

Duvidei de meus laços sanguíneos até amar pela única vez. Uma profética festa de Santo Antônio, no dia 12 de junho de 2003. Antes disso, não havia colecionado absolutamente nada.

Eu me encontrava ao pé do Beco do Vigário, em Alfama. A lua estava cheia e a embriaguez já começava a me cobrir de sorrisos tolos. Foi ali que avistei Carminho.

Maria do Carmo Pereira tinha acabado de completar seus dezenove anos. Era irmã de um conhecido meu. Eu havia sido apresentado a ela quando éramos crianças. Passamos dez anos sem nos cruzar – mesmo sendo Lisboa uma cidade minúscula.

O velho clichê do amor instantâneo fez de mim sua vítima. Passamos a madrugada toda a conversar. Acolhidos pelo miradouro secreto, atrás da igreja de Santo Estevão. Só nos permitimos partir quando a manhã nasceu quente e o Tejo inundava-se em raios de ilusória pureza.

Foi assim que comecei a colecionar. A colecionar Carminho. Seus gestos, sua timidez. Cada partícula de sua alma. Apreendi sessenta e três olhares, cento e quarenta e sete sorrisos, vinte e seis jeitos dela prender os cabelos e duzentos e oito beijos. Superando toda e qualquer dicotomia sujeito-objeto, eu era capaz de colar minha visão ao seu rosto. Um ser indissolúvel, apartado em dois corpos.

Nada necessitava de catálogo. Ficava tudo cravado em minha memória. Nas horas em que não a via, brincava de contar minha suntuosa coleção. Ao final, sentia-me verdadeiramente um Leite de Barros.

Contudo, nossa relação teve um prematuro fim. No dia 14 de julho de 2004, ao sair apressada da Estação Cais do Sodré para me encontrar, Carminho foi atropelada por um elétrico. Seus ossos frágeis não resistiram às feridas e, algum tempo depois, ela faleceu no hospital.

Eu não me conformei com a perda. E, para não deixá-la morrer em mim, passei a colecionar saudades. Todos os dias, religiosamente, dava corda nos seus beijos, nos seus olhares, nos seus cabelos.

Algumas semanas após o seu enterro, decidi deixar Lisboa e a minha família. “Porque me sabia bem sentir saudades deles todos”. O afastamento seria imprescindível para aumentar minha coleção.

Pedi transferência do meu estágio para Viseu, onde meus pais tinham uma propriedade vazia. Por longos seis meses, pude beber da minha nostalgia. Enxertava a pele em fotográficos ensaios. Alimentava a melancolia com curtas metragens daqueles que eu amava. E todos os sofrimentos eram apaziguados.    

Cometi, todavia, um erro fatal. Posicionei Chronos em cumplicidade. E ele é um assassino silencioso. Porque a saudade – ao contrário do que dizem os fadistas – é inimiga das horas. É brutalmente borrada no tempo.

Na manhã de hoje, fui incapaz de reviver um dos beijos de Carminho. Espremi os olhos e não o achei. Rebobinei-me todo e havia desaparecido. A sofreguidão em resgatá-lo deixou-me ainda mais confuso. Eu me traí, sepultando minha doce reminiscência. Agora, estou à deriva. Só enxergo nebulosas. Destroços. Lábios partidos ao meio.

Hoje fui deitado fora. Como me dói, meu Deus! Como me dói essa saudade que sinto das minhas saudades colecionadas! Antagônico, o esquecimento enjaula-me à lembrança. Ninguém ensinou a mim que as coleções devem ficar cobertas de pó. Encostadas em prateleiras. Presas em vidros de éter.

O amor não é encarcerado nem posto em conserva. Mesmo o maior dos amores pode nublar. Paulatinamente, por inércia, cautela em demasia ou escolha, todo amor é passível de fenecer. E a saudade, pela sutil vingança do tempo, não é colecionável.

Digo adeus a mim neste momento porque vou me mudar. Levo meu espírito para abrigar outra identidade. Crio um semi heterônimo. Sem passado algum. Colecionarei saudades de mim mesmo, enquanto me for permitido. Avisto virgens futuros para o meu efêmero ser. Se, por ironia, apagar também essa saudade, não há problema. Eu já não me serei.

* Ps: tive a honra de ter sido publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais, com este conto.

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