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O espelho

espelho

“Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.”

Mia Couto

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Das alegrias inéditas

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.” Mia Couto

E, naquele dia em que nada se espera, o dilúvio acontece. Chega, dilacerando obviedades, lava todas as mentiras desenhadas no rosto, enxuga-se com toalhas gordas de amanhãs e de dúvidas.

Sinto-me menina quando me deparo com essas alegrias inéditas, inexploradas pelo pensamento. Como é possível que o sonho não tenha alcançado nenhum roteiro vinculado à realidade? Onde estavam esses enredos, impensados ao coração? Ah, que felicidade vislumbrar a vida superior à literatura!

E é tão difícil ser feliz. Parece-me quase uma afronta às solidões dramatizadas pelos poetas. Possuo uma imensa tristeza de ser feliz, às vezes. Dá-me uma repulsa incomensurável, uma culpa esmagadora, uma vergonha pelas lágrimas que me foram transbordadas.

Tenho medo de sentir as alegrias inéditas, como se me fosse proibido estar em posse desses acontecimentos. Seria capaz de escrever, encharcada por luzes cósmicas? Quantas exclamações não sonhavam interrogar a ausente melancolia?

Percebo que já havia me dado como vencida. Acabou meu prazo de validade. Você é velha e não se pode dar ao luxo de vivenciar um novo amor. Você não tem autorização para estar em cambaleante sincronicidade. A vida já passou por você. Contente-se com as memórias que foram colhidas. Guarde os antigos protagonistas. Esqueça essa bobagem de extasiar-se, uma vez mais!

Agora, ao tocar meus lábios se escancarando, involuntários, infantis, exilo a mim mesma. Torturo-me por almejar esse futuro que me é sonhado, inebriada com as estradas possíveis do existir.

Mas, ao me distrair, canto em voz alta com os olhos fechados, rodopio pelos salões, rio de mim mesma e gosto da pessoa que me reflete no espelho. A inauguração da plenitude é uma recém-nascida, forasteira.

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À memória de Manoel, o eterno

Mia_Manoel

UM ABRAÇO PARA MANOEL

Dizem que entre nós
há oceanos e terras com peso de distância.
Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.

Contra essa distância
tu me deste uma sabedora desgeografia
e engravidando palavra africana
tornei-me tão vizinho
que ganhei intimidades
com a barriga do teu chão brasileiro.

E é sempre o mesmo chão,
a mesma poeira nos versos,
a mesma peneira separando os grãos,
a mesma infância nos devolvendo a palavra
a mesma palavra devolvendo a infância.

E assim,
sem lonjura,
na mesma água
riscaremos a palavra
que incendeia a nuvem.

MIA COUTO
19-12-2013

 

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.

Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski — seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

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Mia Couto, mestre

 

A DEMORA

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

MIA COUTO, no livro “Idades cidades divindades”

 

 

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O Medo foi um dos meus primeiros mestres…

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Eu me esqueço até do futebol?

“(…) O que me inveja não são esses jovens, esses “fintabolistas”, todos cheios de vigor. O que eu invejo doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas.

A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penaltis eu já tinha marcado contra o destino? (…)”

Mia Couto,
in O fio das Missangas

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Um pouco de Mia Couto…

mia_couto 

 

Por que não me escreveste nunca? Não é de te ler que tenho mais saudade. É o som da faca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém. 

 

Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim. 

Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca. 

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