Arquivo do mês: maio 2015

O escultor de nuvens

nuvens

“— A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? 

— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos?
— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
— Tua pátria?
— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.
— A beleza?
— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
— O ouro?
— Eu o detesto como vocês detestam Deus.
— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?
— Eu amo as nuvens.., as nuvens que passam lá longe…
as maravilhosas nuvens!” 

Charles Baudelaire

Atordoado, o homem, envolto em bocejos, comunga o céu. Busca, insone, algum chamado para a distante perfeição aos seus versos. Sabe, pelos gregos, o quão generosa é a natureza para a criação. São 5h30. Na observação milimétrica, quiçá, ele há de encontrar vozes que clamarão sua pena.

A imaginação, em relação às nuvens, sem dúvida o fará dialogar com o aspecto mais óbvio do devaneio: a abertura da matéria. Afinal, as nuvens são capazes de clarear o mundo, tornando-se um veículo da translucidez. Escolhem, a cada instante, onde estarão as luzes e as sombras.  Ele, matéria imóvel, em sua essência medíocre, poderá flanar, em flocos, para beber o azul do dia.

Uma andorinha exibe os fios, tecidos no horizonte. Distraída, não reclama a autoria do voo que está sendo furtado, traduzido em letras. Seu rasante é, então, libertado pela onírica angústia do espectador.

Surge, no insuspeito poeta, o ímpeto de rasgar a manhã, em voos delirantes e brancos. Pois sabe-se, agora, condenado à mobilidade. Senhor de asas que lhe foram doadas pela primitiva meteorologia.

Tudo caminha para um périplo em mansuetude. A fauna enaltece a alegria. Árvores reverenciam, harmônicas, a tranquilidade adormecida dos deuses. No entanto, não há programação que esteja alheia aos imprevistos. Uma tormenta se enclausura nos domínios do desavisado navegante. E o dilúvio se instaura em cobiça, explicitando a minúscula presença do intruso. E o dilúvio apaga todas as epifanias, filhas da certeza.

O poeta, escravo da verdade, esvoaçado em desencontros, questiona a jornada, expediente incomum. Rememora a trajetória, em terminologia proposital: foi deflorado em nevoeiro, aurora sem sol. Stratus é o desígnio dado a elas, pensou, orgulhoso das aulas que devolveu ao coração, acerca das nuvens. Depois, lá pelas 10h, experimentou a onipotência, acompanhado de Cumulus. O auge do desejo só poderia ser retratado com um nome magistral. A fúria, porém, precipitou-se às 15h, vestida de Nimbus. Exatamente quando ignorava os presságios, trazidos pelos ventos iminentes da grandeza. O naufrágio inundou as folhas e borrou, sem escrúpulos, todos os seus contornos.

As horas se espreguiçam – ressaca de tormenta – vagarosas. A noite ensaia, enfim, suas cores inevitáveis. O sonhador, inebriado, inaugura um pensamento, onde o escuro se dissipa. Quão morosa é a contemplação, nesse fim de tarde de outono?

As iras, também, são fonte de inspiração. Encharcado, às 16h30, o aprendiz de tecelão pode reavistar o astro rei, com seu altruísmo de divindade, a secar as linhas, outrora perdidas em arrogância.

Os momentos que precedem o crepúsculo, tornam-se, assim, imprescindíveis ao conhecimento. As nuvens, criativas e destruidoras, irão descansar da claridade para reverenciar a solidão, lunática.

Em prol de sua redenção, o azul alaranjado pinta no firmamento a última lição: murmura, antes, a provável tempestade, para depois se aninhar em doçura, Cirrus, ululante metáfora da existência.

Uma salutar felicidade, pode, enfim, agasalhar suas palavras. A lentidão já lhe era ontológica. A mesma lã que sonha com metamorfoses, é víscera de fiandeiras. Nenhuma transformação convida a ansiedade. Todo destino reside no floco, inesgotável. O peso da leveza é o tempo.

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A uma cotovia*

cotovia

Percy Bysshe Shelley

Ave, ‘sprito! – certo
tu nunca foste ave –
que do céu, ou perto,
teu coração suava
derramas sem pensar, em arte sem entrave.

Alto, e inda mais logo,
vai teu vôo aéreo;
qual nuvem de fogo
pelo azul sidéreo, e voando alças teu vôo etéreo.

No acabar louro
do sol que fenece
enublado de ouro,
teu ser sobe e desce
como alegria ideal cujo curso comece.

A púrpura cálida
em torno a ti esfria;
como estrela pálida
no já pleno dia
não te vejo, mas ouço essa tua alegria.

Fina como a seta
que essa esfera dá
cuja luz se estreita
na alva clara já,
até mal vermos, só sabemos que ali está.

Toda a terra estava
pelo teu cantar,
como, em noite nua,
de nuvem sem par
a tua luz, e o céu transborda de luar.

O que és não sabemos;
quem te igualaria?
Das nuvens não vemos
chover, alegria
qual chove sobre nós de ti a melodia.

Como poeta oculto
na luz do penar,
cantando o seu culto
‘té o mundo adorar
receios e ilusões que não sabia arriar.

Qual nobre donzela
numa torre antiga,
colmando a alma, bela
de amar, com amiga
música como o amor, que ache a torre que a abriga.

Como pirilampo
oculto a brilhar
‘spalhando no campo
sua luz lunar
entre as ervas e as flores que o escondem do olhar.

Qual rosa que mora
no cálice verde,
e o vento desflora,
e o aroma que cede
embriaga o alado roubador que a perde.

Som do v’rão chovendo
sobre a erva rica,
flores renascendo,
tudo quanto fica.
À alma alegre e boa teu canto multiplica.

Diz-nos, ‘spirito ou ave,
teu doce pensar:
nunca louvor suave
do vinho ou do amar
ouvi como o teu ser tal gozo transbordar.

Coro de himeneu,
alto hino que exulta,
comparado ao teu,
sensabor resulta,
coisas em que a alma sente uma carência oculta.

Que coisas são fontes
do teu canto em flor?
Que ondas, campos, montes?
Que céu, de que cor?
Que imenso amor dos teus, que ignorância da dor?

Ao teu claro gozo
languidez não vem;
tédio doloroso
não te ensombre o bem,
amas, sem ter sabido o tédio que o amar tem.

Dormindo ou desperta,
deves ter da morte
uma luz mais certa
que é da nossa sorte.
Senão teu canto não seria claro e forte.

Da saudade ao sonho
aspiramos tanto!
Nosso ar mais risonho
é da dor o manto,
nossas canções mais suas são as de mais pranto.

Mas se não tivéssemos
medo, e orgulho, e odiar,
se todos nascêssemos
pra nunca chorar,
nunca ao gozo poderíamos chegar.

Mais que todo o ouro
que um canto descerra
que todo o tesouro
que em livros se encerra,
teu canto ao poeta val’, desdenhador da terra!

Soubesse eu o que goza
tua alma, e tal fora
minha harmoniosa
lírica loucura
que o mundo escutaria como escuto agora.

(*To a skylark – tradução de Fernando Pessoa).

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7 de maio


Há exatos nove anos a minha vida mudaria de ares, radicalmente. Eu desistiria das aventuras mundanas para viver algo que estava, como presságio, dito no meu mapa astral. Um amor, prematuro, acometeria minhas escolhas e me daria razões de permanecer neste planeta obtuso, desencontrado de esperanças.
Quando me revisito, naqueles dias mágicos, sinto-me nostálgica. Uma imensa saudade de ser quem eu era, aos quase vinte e três. Uma saudade de me transformar uma última vez naquela encarnação, naquele corpo, naquelas expectativas.
E, impreterivelmente, Lei, todo o nosso enredo estaria imortalizado em poesia e música. Desde o primeiro instante, amado, são essas as nossas tessituras. Às vezes, confesso, em motes sombrios, carregados de tempestades compartilhadas. Às vezes, em glosas eternizadas, centelhas de futuro. Eu e você, escritos por juras e lágrimas.
Você me foi escolha-renúncia. Sabia que, ao seu lado, abandonaria as outras tantas Marianas, que, vez em quando, assombram-me em sortilégios infames. Contudo, sempre que o identifico nas multidões, este sorriso desprotegido de vampiros, um otimismo caricato dos infantes, minh’alma se enleva em plenitude.
Abro nossas antigas mensagens, ingênuas, bobas, patéticas. Éramos flutuantes, mesmo em toques de recolher do PCC. Impressionantemente ridículos, já diria Pessoa. Aquele que, sem amor vivido, pode descrever cirurgicamente os efeitos de se estar apaixonado. Ah, como bebemos Vinícius! Sem vergonha de entrega, exageradíssimos. Como todos os inícios devem ser….
Ouço John Lennon, em volume exorbitante, watching the wheels, a relembrar o jeito com o qual você mexe a cabeça, inebriado pela semelhança com o seu ídolo maior. Seu olhar aumenta o mundo. Meu verbo, contigo, é sempre no infinitivo.
Você me ensinou a escrever. A amar meu pai como cúmplice. A vociferar os oceanos, cujos monstros me pareciam intransponíveis. A imaginar que a gente não depende um do outro. E, nisso, reside uma fórmula para amar alguém. O dia em que precisarmos um do outro, a vida há de nos separar.
Ao ler suas cartas percebo que seus sonhos estão escancarados. Desejo, para sempre, estar perto deles, em lucidez e loucura, seja em antigos sentimentos, seja em anseios de amanhã.
Lei, você mudou todos os rumos das marés, dentro do meu coração. Transmutou o périplo das minhas naus. Suportei o peso das nuvens que você me obrigou a sonhar. Rompi as raízes que me sustentavam, pelo medo de perder a narrativa de nós dois. Eu conheci Lisboa pela sua ausência. E só tenho a agradecer ao nosso encontro.
Fizemos duelos de cartas tão perfeitos!
Concebemos uma casa, uma mangueira batizada, um filho negro, genial.
Hoje, longe, invoco as velhas trilhas sonoras para amenizar a sua falta. Recebi as suas flores, inesperadas! Meditei os herdeiros que teremos, pureza em comunhão. Você foi o acontecimento imprevisível, além-mar, mais precioso do que pude ser testemunha.
“Porque eu te amo, além do amor”
Mizim.

euelei

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