“— A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos?
— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.
— Tua pátria?
— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.
— A beleza?
— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.
— O ouro?
— Eu o detesto como vocês detestam Deus.
— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?
— Eu amo as nuvens.., as nuvens que passam lá longe…
as maravilhosas nuvens!”
Charles Baudelaire
Atordoado, o homem, envolto em bocejos, comunga o céu. Busca, insone, algum chamado para a distante perfeição aos seus versos. Sabe, pelos gregos, o quão generosa é a natureza para a criação. São 5h30. Na observação milimétrica, quiçá, ele há de encontrar vozes que clamarão sua pena.
A imaginação, em relação às nuvens, sem dúvida o fará dialogar com o aspecto mais óbvio do devaneio: a abertura da matéria. Afinal, as nuvens são capazes de clarear o mundo, tornando-se um veículo da translucidez. Escolhem, a cada instante, onde estarão as luzes e as sombras. Ele, matéria imóvel, em sua essência medíocre, poderá flanar, em flocos, para beber o azul do dia.
Uma andorinha exibe os fios, tecidos no horizonte. Distraída, não reclama a autoria do voo que está sendo furtado, traduzido em letras. Seu rasante é, então, libertado pela onírica angústia do espectador.
Surge, no insuspeito poeta, o ímpeto de rasgar a manhã, em voos delirantes e brancos. Pois sabe-se, agora, condenado à mobilidade. Senhor de asas que lhe foram doadas pela primitiva meteorologia.
Tudo caminha para um périplo em mansuetude. A fauna enaltece a alegria. Árvores reverenciam, harmônicas, a tranquilidade adormecida dos deuses. No entanto, não há programação que esteja alheia aos imprevistos. Uma tormenta se enclausura nos domínios do desavisado navegante. E o dilúvio se instaura em cobiça, explicitando a minúscula presença do intruso. E o dilúvio apaga todas as epifanias, filhas da certeza.
O poeta, escravo da verdade, esvoaçado em desencontros, questiona a jornada, expediente incomum. Rememora a trajetória, em terminologia proposital: foi deflorado em nevoeiro, aurora sem sol. Stratus é o desígnio dado a elas, pensou, orgulhoso das aulas que devolveu ao coração, acerca das nuvens. Depois, lá pelas 10h, experimentou a onipotência, acompanhado de Cumulus. O auge do desejo só poderia ser retratado com um nome magistral. A fúria, porém, precipitou-se às 15h, vestida de Nimbus. Exatamente quando ignorava os presságios, trazidos pelos ventos iminentes da grandeza. O naufrágio inundou as folhas e borrou, sem escrúpulos, todos os seus contornos.
As horas se espreguiçam – ressaca de tormenta – vagarosas. A noite ensaia, enfim, suas cores inevitáveis. O sonhador, inebriado, inaugura um pensamento, onde o escuro se dissipa. Quão morosa é a contemplação, nesse fim de tarde de outono?
As iras, também, são fonte de inspiração. Encharcado, às 16h30, o aprendiz de tecelão pode reavistar o astro rei, com seu altruísmo de divindade, a secar as linhas, outrora perdidas em arrogância.
Os momentos que precedem o crepúsculo, tornam-se, assim, imprescindíveis ao conhecimento. As nuvens, criativas e destruidoras, irão descansar da claridade para reverenciar a solidão, lunática.
Em prol de sua redenção, o azul alaranjado pinta no firmamento a última lição: murmura, antes, a provável tempestade, para depois se aninhar em doçura, Cirrus, ululante metáfora da existência.
Uma salutar felicidade, pode, enfim, agasalhar suas palavras. A lentidão já lhe era ontológica. A mesma lã que sonha com metamorfoses, é víscera de fiandeiras. Nenhuma transformação convida a ansiedade. Todo destino reside no floco, inesgotável. O peso da leveza é o tempo.