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Camafeu

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Paulo Mendes Campos

A minha avó morreu sem ver o mar. Suas mãos, arquipélago de nuvens,
Matavam as galinhas com asseio; o mar também dá sangue  quando o peixe
Vem arrastado ao mundo (o nosso mundo); no entanto no mar  é muito diferente.
As gaivotas, mergulhando, indicam o caminho mais curto entre  dois sonhos
Mas minha avó era feliz e doce como um nome pintado em uma barca.
Sua ternura eterna não temia a trombeta do arcanjo e o Dies lrae:
Sentada na cadeira de balanço, olhava com humor os vespertinos.
Sua figura pertenceu à terra, porém o mar, rainha impaciente,
0 mar é uma figura de retórica. No porto de Cherburgo, há muitos anos,
Ouvi na cerração o mar aos gritos, mas minha avó jamais ergueu a voz:
Penélope cristã, enviuvada, fazia colchas de retalhos fulvos.
0 mar é uma louça que se parte contra as penhas, enquanto minha avó
Fechava a geladeira com um jeito suave, anterior às geladeiras.
Igual ao mar, os dedos da manhã a despertavam num rubor macio;
Pelo seu corpo quase centenário a invisível vaga do sol se espraiava,
A carne se aquecia na torrente dos constelados glóbulos do sangue,
As pombas aclamavam outro dia da crônica do mundo (o nosso mundo)
E de uma criatura que se orvalha em suas bodas com a terra dos pássaros
Matutinos, das frutas amarelas, da rosa ensanguentando de vermelho
0 verde, o miosótis, o junquilho, e em tudo um rumor fresco de águas novas,
Um verdejar de abóboras, pepinos, um leite grosso e tenro, e minha avó
Com tímida alegria indo, vindo, a prever e ordenhar um dia a mais,
Assim como as abelhas determinam mais 24 horas de doçura.
E enfim no litoral destes brasis, o mar afogueado amando a terra
Com seu amor insaciável, dando um mundo ao mundo (o nosso mundo)
E a gravidade intransigente do mistério. Mas minha avó morreu sem ver o mar.

 

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Neste soneto

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PAULO MENDES CAMPOS

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

 

 

EPITÁFIO – Paulo Mendes Campos

Se a treva fui, por pouco fui feliz.

Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.

Se Deus foi a doença, fui saúde.

Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.

Se a luz era visível, me enganei.

Se eu era o só, o só então amei.

Se Deus era a mudez, ouvi alguém.

Se o tempo era o meu fim, fui muito além.

Se Deus era de pedra, em vão sofri.

Se o bem foi nada, o mal foi um momento.

Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.

 

Para que me reflitas e me fites

estas turvas pupilas de cimento:

se devo a vida à morte, estamos quites.

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Os lados

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Paulo Mendes Campos

Há um lado bom em mim.
O morto não é responsável
Nem o rumor de um jasmim.
Há um lado mau em mim,
Cordial como um costureiro,
Tocado de afetações delicadíssimas.

Há um lado triste em mim.
Em campo de palavra, folha branca.

Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos,
Sois em mim o lado irreal.

Há um lado em mim que é mudo.
Costumo chegar sobraçando florilégios,
Visitando os frades, com saudades do colégio.

Um lado vulgar em mim,
Dispensando-me incessante de um cortejo.
Um lado lírico também:

Abelhas desordenadas de meu beijo;
Sei usar com delicadez um telefone,
Nâo me esqueço de mandar rosas a ninguém.

Um animal em mim,
Na solidão, cão,
No circo, urso estúpido, leão,
Em casa, homem, cavalo…

Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio
Como um discurso,
Um lado frágil, verde-úmido.
Há um lado comercial em mim,
Moeda falsa do que sou perante o mundo.

Há um lado em mim que está sempre no bar,
Bebendo sem parar.

Há um lado em mim que já morreu.
Às vezes penso se esse lado não sou eu.

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Infância

infancia

Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.

O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.

 Paulo Mendes Campos

 

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De repente

poetasCarlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Mario Quintana e Paulo Mendes Campos.

(Foto roubada do blog da Companhia das Letras, no texto do Leandro Samartz)

Minha homenagem a Paulo Mendes Campos vai até seu aniversário, no dia 28/02, quando ele completaria 92 anos. O texto de hoje eu mesma digitei. Não estava, em minhas pesquisas, disponível na internet.

“E de repente, caminhando nesse dia de novembro, atribulado de deveres, no trigésimo quinto ano de minha história confusa e malbaratada, quando todas as amarguras já bebi, nem de todo sábio, nem de todo bobo, não tendo outro propósito no espírito senão o de abrir bem os olhos, pegar os objetos, ouvir, provar os vinhos turvos, respirar este aroma vegetal de tardes antigas, receber a dádiva dos sentidos e cumpri-la, aquecendo-me ao sol, molhando-me na chuva, banhando-me no mar, de repente, em meu caminho, cruzando por um cego embriagado e crianças de uniforme, imaginando com remorso que a gente esperdiça tempo demais a trabalhar sem amor, de repente, sem qualquer disposição para o jornalismo, sereno às quatro horas da tarde, empenhado em não deixar o dia partir inutilmente, dedicando-me com toda a honestidade a enamorar-me do mundo, pelo menos deste momento irresistível, de repente ocorreu-me de novo o milagre, e doeu-me – coisa espantosa – uma saudade magnífica de Paris na primavera, os plátanos agitando as ramas, os bancos à beira do rio, onde li e reli que sob a ponte Mirabeau corre o Sena, e a alegria sempre vinha após a pena, e era saudade mais de mim a vadiar pelas ruas e os bosques, indo e vindo pelo cais da margem esquerda, remexendo livros empoeirados, admirando a cor e o imponderável, brincando com as pontes o eterno jogo da poesia, afeiçoando-me até morrer pela ilha de São Luís, as torres góticas encastoadas em luz de ouro, e outras cores, outras ramagens, ruas que faziam por si mesmas o meu destino, os vinhos tintos do crepúsculo, as brisas eufóricas, uma saudade, disse eu, sem jeito feérica, Rue Gît-Le-Couer, Rue de Hautefeuille, Rue de la Harpe, uma saudade que me dispersava, fatalizando-me suavemente, inclinando-me às águas quiméricas do tempo, como me perco no olhar de quem amo.”

Paulo Mendes Campos

 

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Onde os escuros são mais sábios

Paulo Mendes Campos

“Não perguntar o que um homem possui, mas o que lhe falta. Isso é sombra. Não indagar de seus sentimentos, mas saber o que ele não teve a ocasião de sentir. Sombra. Não importar com o que ele viveu, mas prestar atenção à vida que não chegou até ele, que se interrompeu de encontro a circunstâncias invisíveis, imprevisíveis. A vida é um ofício de luz e de trevas. Enquadrá-lo em sua constelação particular, saber se nasceu muito cedo para receber a luz da sua estrela ou se chegou ao mundo quando de há muito se extinguiu o astro que deveria iluminá-lo. ‘No light, butratherdarknessvisible’.” Paulo Mendes Campos in Sombra. Primeiras Leituras, p. 104-105.

Compartilhamos essa angústia frutuosa pela ternura. Uma vontade de tocar a todos com a ancestral tristeza, infante. Sensação embriagada, esses silêncios corrompidos por palavras. A vontade de estar frente à morte, e ignorá-la, em austeridade.

Deitamos as noites, enganando-as, porque as inspirações chegam atrasadas, em ocasiões especiais. E também esta ridícula fascinação pelos trôpegos e miseráveis protagonistas da realidade. Medo de estarmos errados, sendo céticos.

E, de repente, nesse alvorecer de fevereiro, ainda envolta por cartesianas lembranças, despertar os vulcões hibernados da melancolia, para sentir com precisão, para doer em completude, para cravar assinatura no firmamento que me é testemunha.

Eu, aprendiz de solidão.

Acreditar nos domingos, curadores de ressaca. Libertar a mudez insuspeita dos crepúsculos em goles de eternidade. Suplicar para que a dor volte, entusiasmada de mistérios.

Lírica.

Um amor mútuo por Clarice, daqueles que ferem as entrelinhas e perdem a doçura. Amor que sangra as gengivas, encharcadas de poesia e sofrimento. Vampiros que somos, pelas tardes vermelhas que não voltam nunca mais.

À procura de pólvoras incandescentes, esvaziamo-nos, exangues. A vírgula meticulosamente empregada. O verso mais bonito no final. O título que ainda está gestando. E, claro, o esmorecimento da criação.

Queria que viesses, desprovido de raízes. Copo na mão, cigarro na outra. Amaria ouvir onde vive o amor de amanhã, salvo em teus versos.

Aclamado em vida ou perpetuado pela história?

Como te pensavas, meu querido?

Seria a vida uma insuportável contrarregra, se soubesses agora?

É sempre poesia o que dizes de ti mesmo? Se sim, apenas para amenizar a tortuosa sina?

Ah, estrela desencontrada em sincronia! Talvez por isso tenhas as coincidências como tema.

Não me importa.

Hoje pude revisitar-me em infâncias, sabendo que são estas as viagens impossíveis de planejar. Encerrando-me no instante de nós dois, Paulo Mendes Campos. A pedra me doou o seu suplício.

E as rimas, que insistem em escrever.

Para quê?

Nunca deixei que a melodia atravessasse os meus segredos.

Tu me deste a sombra – inerente aos braços dos moinhos – para sonhar. E quem sou eu para sonhar a imensidão, tão doída, tão doida?

Bêbado de tanto ofuscar-te, respondes a mim:

– Lá, intrínseco à posteridade.

Quando o amor não acaba e os escuros são mais sábios.

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Balada do homem de fora

PAULO-MENDES

Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.

O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.

No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.

O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.

O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.

Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.

A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.

Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.

Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.

Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.

Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.

Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.

O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.

Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.

Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.

Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.

Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.

Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?

Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
“Nunca tive consciência
nem sentimento moral”.

Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
“Sou firme que nem areia
em noite de tempestade”.

Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.

Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.

Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos – a vida;
eu nem amo meus amores.

Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais…

A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.

Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.

O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.

Paulo Mendes Campos, o mestre que homenagearei no sarau da próxima semana.

 

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O tempo é meu disfarce…

Sentimento do tempo 

Paulo Mendes Campos

Os sapatos envelheceram depois de usados
mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.

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O amor acaba*

*Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.


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Eu, aquela que guardava os tesouros em mapas indecifráveis

Eu, aquela que guardava os tesouros em mapas indecifráveis… Como resolução de ano novo, decidi doar meus amores literários. Posso dizer adeus às coisas que amo porque os olhos me são e nenhum indivíduo sequer é capaz de ofertar às minhas musas maior afeto dedicado, tamanha devoção canina. E o meu amor pelos meus se torna um desafio para quem o compartilho.

Perfil a lápis – Paulo Mendes Campos

Morei em Ipanema, passei para o Lebon, virei serrano. Vou e venho.

Amo e desamo. As palavras me pegam. No fim resta o silêncio: sou vidrado na minha dor.

A ecologia era esta: vovô me dava doces. Vovô me deu um menino Jesus de barro. Mamãe comprava palmito para a minha salada de alface. Papai fazia cadernos para que eu estudasse. Tia Zizinha cortava-me as unhas com muito carinho. Tia Nininha costurava meus calções de futebol. Tio Valdemar me levava para ver o Atlético, tio Tatá me dava prata de cinco mil-réis. Tio João esgrimava comigo no fundo do quintal. Tio Antonio fez uma horta Meu primo Hélio me deu meu primeiro cigarro. Dolores, minha mãe regra-três, me defendia dos capetas maiores. E Isabel, também regra-três, olhava para mim com doçura e suspirava: “Coitadinho dele!”

No sentido publicitário do verbo, vou me vendendo depressa a idéias, pessoas, paisagens, climas, livros, objetos – o que existe no mercado. Quando morei em Ipanema fui Ipanemense convicto; passei a ser lebloniano; fiz uma casa na serra, virei serrano.

Nunca tive centro de gravidade mental ou psíquico. Vou com todo mundo, todas as têmperas, todas as cores, todos os pratos do cardápio. Copiei um grifo de Stendhal: “Nunca tive consciência nem sentimento moral.” Fiz meu o verso de Murilo: “Sou firme que nem areia em noite de tempestade.”

Dou a alma pelo azul e traio o azul com o castanho.

Nasci para ser mundano, apesar de toda a minha desconfiança. Se soubesse dançar bem, não sairia do dancing. Amo acima de todas as coisas a sobriedade dos sentidos. Mas dou um boi pra ficar ubriaco.

Não posso contemplar cartaz de propaganda turística sem me derramar pelas ravinas glaciais da Suíça, ou passar o verão no Marrocos, ou flanar pelo chiaroucuro de Praga, ou estender-me como roupa branca de Portugal. Mas sou capaz de trocar tudo por entre um sono entre o jantar e a velhice.

Não é preciso qualquer eloquência para persuadir-me. Nasci convencido. Amarro minhas mãos para não bater palmas aos discursos idiotas. Prendo meus tornozelos a pesadas grilhetas para não frequentar locais absolutamente intoleráveis.

Fecho meus olhos para não sorrir a quem não vai comigo ou me detesta; mas às vezes já é tarde.

Também às vezes me agrido porque também amo a agressão. Às vezes choro porque chorar é um prazer irreprimível e o mundo gosta de lágrimas. Li os clássicos com saudade dos românticos.

Perdôo a mim mesmo porque é doce perdoar. E também me destruo porque é duro destruir. Sou vidrado na minha dor.

Estraçalho uma bacalhoada com um vigor lusitano, mas sei dedilhar uma travessa de caracóis com um racionalismo gaulês. E talvez gostasse de passar a pão e água.

A chuva me pega com facilidade. E quando chega o sol, faço-me uma ode de carne e vou tomar sol.
Se me dedico dois minutos a imaginar o tamanho da terra, quero ir às honestas canseiras da lavoura, sou lavrador, bicho do chão, raiz. Mas já dei comigo consultando livros de mineralogia. E saio sempre voando quando passa o avião.

Pobre ser mercurial, escorro em tudo, rolo, desato-me e depois me recomponho, para escorrer de novo, rolar, desatar-me.

Às vezes dou comigo comprando uma casa no subúrbio, mas a poluição me desanima: compro um rancho nas lonjuras de Góias. Ou abro uma salsicharia na Avenida Ipiranga.

Vou e venho – é um direito, é uma obrigação que me impele, que me abusa, que me pertuba. Amo e desamo. Faço e desfaço.

Vi em Shakespeare um tonto quando li a antipatia de Tolstoi. No dia seguinte achei o russo um cego.

Passo para o lado de quem me ataca. Desculpo o bem e o mal que me fazem.

Redigindo publicidade, acabei me apaixonando pela técnica de fabricação de certos produtos.

As palavras me pegam. As imagens me pegam. As inflexões me pegam. Viro amigo de infãncia de qualquer desconhecido.

O mal e o ruim frequentemente ganham de mim. Chego a morrer com simpatia.

No fim de tudo resta o silêncio, que é a minha liberdade. O meu vazio.
Serei o bobo do universo?
Nem isso: só um bobo. Mas gosto de ser bobo.

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Sincronicidade é maior do que destino…

 

Para Maria da Graça – Paulo Mendes Campos

Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

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Pequenas ternuras*

Paulo Mendes Campos

Quem coleciona selos para o sobrinho; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se se detém no caminho para contemplar a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas ou de já não aguentar subir uma escada como antigamente; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso; quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade; quem se deixa tocar pelo símbolo da porte fechada; quem costura roupas para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar, já quebrando a cerimônia com um início de sentimento: “Meu pai só gostava de sentar-se nessa cadeira”; quem manda livros para os presidiários; quem ajuda a fundar um asilo de órfãos; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem compra na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias de um amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque para brincar com amigo ou amiga distante; quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas; quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha; quem se desata em riso à visão de uma cascata; quem não se fecha à flor que se abriu de manhã; quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes; quem se perturba com o crepúsculo; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente a pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga perceber o “pensamento” do boi e do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre.

* Essa pequena ternura é a Bella, filha dos meus amados primos, o Dani e a Nicole. Quantas vezes eu não fui salva pela sua voz…

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