Arquivo do mês: abril 2013

Miopia

Míope é a vida!

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Viciada em inícios

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Enquanto a noite cai, piedosa, eu me sento e agradeço. Existe mais um universo prestes a ser desvendado, aqui. Os seres, exaustos de futebol ou de cachaça, já hibernam em felicidade ou tristeza: e pouco é importante o resultado do jogo. O que basta é o prazer de ser testemunha.

A janela já não traz o balbuciar inerente à uma cidade literária. E os deuses não abençoam o vinho, vindo de tão longe para apaziguar a sede dos silêncios. Tudo conspira pela folha em branco, pelo raiar soturno, útero sem fonte. No entanto, continuo a acreditar que a madrugada carrega em si a fantástica capacidade de rejuvenescer-me. Que todo vazio comporta as inspirações mais inacreditáveis. E que os espíritos de luz tornam-se aliados nesta encruzilhada.

Não é porque a vida apresenta-se mais calma, nesta hora de zelo, que os princípios sejam fetais, sorumbáticos. Ao revés dos contos de fada, a narrativa divina está mais alerta, nos segundos que antecedem às auroras.  Ouço um poema, recitado por outrem: reclamo! Prefiro a voz de meus próprios olhos, a entonar as sílabas em plenitude.

Coloco-me à disposição das páginas inauguradas: ao relinchar infantil dos prazeres sem dono, à insustentável incompreensão que precede o toque das línguas. E respiro uma galáxia, insone, ao iniciar uma leitura.

Corruptível aos começos, assim me defino. Com profundo horror às conclusões. Estou adicta, desde o meu nascimento, a esperar amanheceres como companhia. Roubo, com pitadas de psicopatia, quaisquer infâncias que me rodeiem, desde que sejam puras, imaculadas, pequenas. Aposso-me, também,  de tuas memórias remotas, até o pertencimento sanguíneo, podendo beber de teus inícios sem pudor.

Enalteço os versos prematuros, dignos de rasuras e incompletudes. Acaricio as rubras faces, embevecidas de quimeras. Perdoo os desperdícios, designados às renovações. Doou-me às manhãs tristes de abril, quando o sol não pode estancar a gélida ternura dos outonos. Porque o agora me invade e me determina a existir, num cálido pacto de nunca vivenciar o eterno retorno.

Ao tilintar de uma rolha, em harmonia com o oxigênio, estou eu. Na ruptura submersa que insiste a tinta, frente à folha. Em suntuosos devaneios de mar, em dia de ressaca. Na saliva em comunhão. No perdão de amar um ser humano o qual jamais ouvirei a voz. Nas surpresas inexoráveis do destino, ainda que cravadas na palma da mão. Lá podes me encontrar.

É por isso que sinto saudades. Presa aos instantes de estreia. Reconheço-me em ti, sábio poeta, cujo nome corrobora a beleza de ferir. Entrego-me, contigo, à mansidão límpida das estrelas ofuscadas. Ao amor que se foi. Ao amor que não tive. Ao amor que inventei.

Economizo gestos e palavras, em tua presença. Ignóbil sonhadora de rabos de cometas. Já não preciso dos teus dizeres ao pé do ouvido. Indecifrável e querido mestre, sou tua. Grávida de esperanças. Viciada em inícios, amado Vinícius.

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Alma antiga

Alma antiga de onde eu vim

Quimeras


Vende-se uma alma
rota por tempestades
não mais veleja ou naufraga.
Vende-se uma alma
Antiga, tão antiga
Que se desfaz
Chumaços.
Vende-se uma alma
Que ainda voa.

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Nasci pra ti antes de haver o mundo.

fernando-pessoa1

XXI

— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
……………………………………………………………
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
……………………………………………………………
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.

Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas […]
… Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves.  Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
……………………………………………………………
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
……………………………………………………………
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma ‘strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
……………………………………………………………
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe…
……………………………………………………………
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir…?
……………………………………………………………

Fernando Pessoa

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Minha mãe, poeta

Quimeras

para Dadá

A tarde segredou-me
Inconfidências
Contou-me, com pudor,
Como as árvores trocam carícias
Enlançando os galhos
Com delicadeza.
Falou-me com rubor
Do cio estridente das cigarras
E do dialeto incompreensível dos insetos.
Ah, a tarde lamentou a visita
Esporádica da lua
e a frustração
De não encontrar estrelas.
E disse-me também
Como são tristes
As tardes da cidade.

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