outubro 23, 2009 · 5:18 am
“O eu sabe prever antes de mais nada e o eu é impotente para prevenir”. Edna O´Brien – Dezembros Selvagens
O parto já dura algumas semanas. As primeiras contrações foram tímidas, mínimos asteróides que se estilhaçam em mares dialogados. Uma palavra bonita, um acontecimento revisitado em uma conversa, sonho cravado despretensiosamente em um livro.
O grande obstáculo do devaneio em questão é a sua própria essência: dissertar acerca dos prólogos humanos. Porque é mais difícil mergulhar nos próprios começos. Compreender que eles estão sempre dilacerados pelos fins.
Este texto está custando tanto a nascer que eu mesma já sinto o cansaço da respiração ensaiada, o intraduzível condoimento de adormecer sem ter desmantelado ideias. Enquanto ele estiver envolto em meditações, a placenta goteja e não se rompe, impedindo o coração de pulsar apenas por si só.
Eu nunca fui casa para ninguém. Não dividi proteínas. Os meus seios não produziram anticorpos. Todavia, também não posso esvaziar-me sozinha. Hoje, sou mãe única e exclusivamente das minhas palavras.
Por que razão preciso de bisturis, meu menino? Você não quer ou ainda não pode ser-no-mundo? Será que ainda é prematuro conhecer a si? Ou serei eu a pior das criaturas, estúpida criadora? Quero ser embalada em suas imagens e lembrar dos meus inícios. E como todo nascimento espelha-se em Narciso, preciso enxergar a mim, quando extasiar-me nas ataraxias da sua tez.
O nascer não espanta as temeridades, assim como o batismo não imprime a alma. Mas há um medo, um desespero, uma dor tão grande em aceitar! Deixar meus prólogos povoarem essas frases, partindo de mim. Ao deitá-los nas linhas, eu os dou para o mundo. O dizer adeus, desértico. A obrigatoriedade dos interlúdios nus.
O prólogo está em todas as minimidades cotidianas! Reside na limpeza dos cinzeiros, banhados pelas águas do esquecimento. Está nos fins de romances, quando há resistência em terminá-los. Os personagens irão embora. Como é possível suportar a saudade?
Todo prólogo é unha quebrada, aquela que recorda a sensibilidade subjacente do dedo. Ele é a bruma dos banhos embevecidos em sais, quando se crê na purificação do espírito pela carne.
Alguns prefácios se alimentam das luzes artificiais para apaziguar o breu. Brilham em neon, imitadores galácticos. Reluzem divinos, na escuridão do quarto. As horas do sonhar são, pois, enlances das trevas.
Mas há tanta ignorância frente aos começos. O equívoco de contrapô-los à finitude. Avesso, oposto ou repulsa. O encerramento nada mais é do que seu gêmeo univitelino. Ser que circunscreve os traços do exórdio. Só existe semente na morte do fruto, reentrância da terra. É, ocasos apavoram! E os crepúsculos – por quê? – nunca são ensinados.
Inícios de mim, vocês podem ir agora. Nasçam, desgrudem-se da minha loucura. Soltem-se, cintilantes prolepses. Antecipem suas chegadas, sobranceiros. Eu, confusa e exaurida, gozo a imersão das dores que expulsam o feto. A madrugada está dando lugar ao azulejar do dia. Apago os lampiões para retardar o sol. Com a memória, morte que traz a celebração. Vão embora de mim. Não há instante que se atrase.