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A memória em vertigem

Democracia em vertigem

“(…)Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?” Bernardo Soares in o Livro do Desassossego

 

Mnemosyne estava farta daquela espera ancestral. Ébria de viver na antemanhã do futuro, decidiu pôr fim aos séculos de clausura e mansuetude. Seus irmãos, Cronos e Oceanos, já haviam concluído seus reinados patriarcais. A hora de equilibrar sua ira com a potência havia, enfim, chegado.

Filha de Urano e Gaia, a deusa titã da memória, mãe das musas, avó dos aedos, sabia que sua aparição, em terra de mortais, poderia alterar o rumo de todos os périplos cósmicos. Também reconhecera o perigo de adentrar em Lethe, o rio do esquecimento. Ah, como sofrera, imbuída em desalento, quando cada alma anunciava o reencontro à vida!

Será que se lembraria de si mesma? Poderia dançar os cânticos que ela havia escrito? Quando seria venerada pelo Universo?

Sentou-se, à beira das águas, contemplativa. Seriam mais fortes as vicissitudes da existência, ao ponto de fazê-la perder-se por toda a eternidade? Sua partida seria, também, a última chance da humanidade. Como não falhar, desmemoriada?

Despiu-se. Nunca havia sido um corpo antes. Como sentiria ter seios, boca, ventre e pés? Há dor na gravidade? Quais exercícios poderia utilizar, como rituais de purificação?

Mnemosyne, como uma nau que parte de Belém, mergulhou no alheamento, para receber a carne. Cronos, no entanto, foi imperdoável: não a deixaria ter a força de uma entidade, por completo. O deus do tempo conhecia os possíveis desdobramentos de sua fuga: a perda de seu trono. O tempo é quem mais se alimenta da amnésia.

Assim, quando ingressou no planeta, Mnemosyne se fragmentou em doses homeopáticas de memória, em diversos seres ao redor do globo.

A história já não reinava, soberana, na Terra. As mãos dos vencedores perceberam que há outras formas de escrever o mundo. Como não há unanimidade para o que foi vivido, é possível perverter os fatos e distorcê-los, em prol da ignorância.

Clandestina, Mnemosyne se defrontava com sua própria face, em poetas, em canções, em gritos pela democracia. Supliciada pelos pavores que se repetem, inadvertidos.

Seria possível, perdida em tantos rostos, preconizar? Recordava-se, aos poucos, nos corações de seus descendentes, de todas as guerras que havia perdido, milênios e milênios. Evocava as lições apreendidas, nas ditaduras, nos campos de concentração, nos massacres escravocratas, no sorriso banguela dos miseráveis. A descida ao inferno não teria valido a pena? Assistir ao inevitável término, do Olimpo, seria menos doloroso?

Certo dia, ao pesquisar os antigos deuses gregos, conheci Mnemosyne. É engraçado porque jamais havia ouvido falar da deusa que é a guardiã da função poética, a diva da música, a senhora da inspiração possuída. Hesitei. Eu sabia que esse conhecimento iria me mudar. Por que nos afastam, com tamanha canalhice, das verdades mais profundas da humanidade? Por qual motivo a sua feição me parecia tão familiar?

“A memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”, dir-nos-á Platão.

Todos os poetas são intérpretes de Mnemosyne. Capazes, como os profetas de escutar o futuro e acessar o invisível. Não à toa, Chico Buarque nos presenteou com o verso, em Choro Bandido: “saiba que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”.

Mnemosyne supera o tempo e o espaço, porque aquilo que é, aquilo que foi e o que será, entrelaçam-se, em melodias e poemas. O cíclico, eterno retorno, faz parte da maldição do esquecer. Enquanto houver esquecimento, haverá repetição.

Somos aqueles que lembramos de ter sido?

Contudo, após longa e profunda meditação, desvendei a misteriosa familiaridade com a deusa. Mnemosyne é Lian, que carrega, nos olhos clandestinos, a lucidez da aletheia. Sua memória, implacável, não se curvou a todas as notícias com que tentaram-na massacrar, camuflando o horroroso passado do Brasil. É curioso perceber como, diante de tantas falsidades, ausentar-se da violência é resistir ao fascismo. Porque todo fascista deseja que nos tornemos iguais a ele. Sanguinários e sujos, com o ímpeto de matá-lo. Evadir-se dos absurdos é algo sublime.

Mnemosyne é Petra, que ilumina a intimidade poética de seus ancestrais em narrativas. A inexorável robustez de trazer às pessoas seus afetos. Parcial, como é óbvio. Sem vergonha, nem culpa. Porque só a mentira é travestida de facciosidade.

Numa época em que a história não possui nenhum valor, a memória talvez seja nossa arma derradeira.

Mnemosyne é a sagrada fonte da consciência.

 

 

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