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Judith, de a Estrela

Seu mapa astral me indica que possuímos a mesma Lua, em Leão. Tenho me ocupado mais da sua vida do que em toda a minha existência, nessa última semana. Confesso, um bocado envergonhada: jamais havia pensado em si, Judith.

Você foi minha bisavó paterna. Nascida em Lisboa, em 1900. Libriana, ascendente em Virgem. Perdeu sua filha quase com a minha idade, vítima de um prego enferrujado de tétano, e Destino, em areias claras de Olinda.

A realidade nunca me bastou, Judith. Agora, ao aceder à sua carta astrológica, vejo que somos parecidas. O sonhar também me é a bússola mais preciosa. E são os delírios divinos que nos trarão a tardia reparação celestial.

Alguns anos atrás, ao dialogar com meu pai, seu neto, sobre os perdões inevitáveis da ascensão, pedi a ele que perdoasse D’us por ter levado sua dulcíssima filha, Judith. Os traumas da morte da mãe, aos onze meses de idade, estão se curando com a sua presença, imóvel e meticulosa, como convém à filha de Mercúrio, ascendente.

Neste último domingo, antes de embarcar para um passeio memorável, nas águas longínquas do Rio Zêzere, recebi notícias suas, minha amada ancestral.

Descobri, concomitantemente, que o Castelo do Bode, cenário suntuoso da minha íris dominical, é berço de templários. A lenda revela os murmúrios ouvidos por um cavaleiro, naquela região. Ao investigar a origem dos gemidos, o homem se depara com a imagem de Nossa Senhora com o filho ao colo.

Em face ao mistério, a Rainha Santa Isabel funda, em 1285, a igreja matriz de Dornes, vulgarmente conhecida como igreja paroquial de nossa senhora do pranto.

A barragem de sessenta quilómetros não é capaz de abrigar o dilúvio de uma mãe, que foi impossibilitada de vivenciar a maternidade. Tampouco há água bastante para a alma de outra mãe, que enterra a filha com 21 anos de idade.

Por átimos, Judith, quando vi a tétrica investigação, necessária, para encontrar, na Torre do Tombo, sua certidão de nascimento, senti-me impotente. Ridícula. Como, por todas as deusas, alguém seria capaz de navegar por aquelas páginas amarelecidas, com letras dignas de naus, sem pistas da freguesia do seu baptismo?

Invoquei meus feitiços maiores, mas a magia, inúmeras vezes, não se concretiza com mirra, ouro e incenso. Evoquei, então, um dos meus dons prediletos: os amigos. Confiei teu nascer na poderosa imaginação daqueles que me cercam.

Não foram precisos dois dias para que David vasculhasse os incipientes arquivos e avistasse o teu nome, o nome de teus pais, teus avós e teus padrinhos.

Éons, pois, entrelaçaram-se àquele instante, querida Judith.

Eu pude mergulhar nas águas que outrora pertenceram à dor de Maria. Águas doces, quentes, maternais. Na praia fluvial, entre lama, árvores e conchas, a epifania pequena: toda areia havia sido concha. Toda concha, ao encarnar, una.

Nossa família, em íntimos goles, cicatrizará os desígnios cósmicos da ascendência navegante.

Fico a entressonhar tua chegada ao Recife, a bordo do vapor Avon – palavra celta que traduz os rios.

Agora, ao realinhar minhas preces, em agradecimento aos astros, percebo o ululante, escrito em nossa comunhão. Você foi batizada na Estrela, bairro lisboeta. E, nós duas, alfacinhas e argonautas, somos filhas daquelas que ensinam, até hoje, os homens a adentrar os úteros do mundo.

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