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Entre anjos

Ao Assulus Sentinela, exu galáctico e à Diana Motta, a Deusa.

– Vou lá, encontrar-me com Rimbaud!

Escrevi essa frase, há pouquíssimos instantes, ao me despedir do anjo que teceu o caminho em magia, nessa quarta-feira lemuriosa em Lisboa.

Tenho experimentado tristezas nada solenes e vazios indignos de poesia, nos meses que me cercam. Sem afagos ao ego, minha vida se resume ao trabalho, com requintes de destruição, horas vagas. Os instantes deixaram de ser suntuosos, para abrigar a mediocridade de madrugadas sem amanheceres.

Entanto, eis que surge a dádiva dos viventes: apesar dos murmúrios, estar alerta. Atenta aos ínfimos milagres que compõem a existência, quando todos os suspiros residem na desesperançada mudez cotidiana.

Nessa semana, inaugurada pelos astros, amanhã, Lua Cheia em Gémeos, os motes patéticos do amor foram silenciados. Afinal, se existe Copa do Mundo, reside dentro de mim uma poesia futebolística, primeira, afetiva, capaz de silenciar os arroubos de falta. As entidadess, tenho a certeza, também amam a imprevisibilidade das bolas, dos gols, das nações anestesiadas pela alegria – efêmera.

Qual alegria reproduz o signo de eternidade?

Ela existe?

Vim me encontrar em Rimbaud, nesta noite sem jogos, mas com memórias afetivas das mais espetaculares acerca de minha infância. Porque o futebol, para o Brasil, traduz o meu sonho favorito: o sonho que é ilimitado. Nunca sonhei com pequenezas, como a casa própria ou um verão à beira-mar. Os sonhos, meus e de todos os brasileiros, são conduzidos por intransponíveis habitares.

Em junho de 1990, precisamente no dia de São João, meu pai desembarcava em São Paulo, junto com a seleção, que perdeu, prematura, a Copa na Itália. Minha irmã nasceu, também prematura. E meu pai pode chegar para vê-la. Viver é ululante.

Em 1994, meus sentimentos são ainda mais descompassados. Cai do cavalo literalmente – antes do primeiro jogo da Copa. E, por causa disso, pude assistir à loucura do Maradona; ao amor entre Romário e Bebeto, ao escândalo de perder o Leonardo, violência mais compatível com deuses que com os humanos.

Em 1998, contrária aos traumas de todos os meus conterrâneos, restou-me os beijos recém aprendidos; os amores com trilha sonora; minha mãe tomando licor de ouro na fatídica final contra a França. Minha mãe, sempre à frente de toda a humanidade. E o ouro, mais à frente do que ela, já era ostentado desde os tempos coloniais.

Todas as copas passam pelas nossas mentes, tenho a certeza. A identidade do nosso país está acoplada ao sonho impossível de vencer. É no futebol, e na música, e na literatura, e em todas as artes que ainda sonhamos.

Na última Copa do Mundo, mal lembro quais foram meus passos. Não houve beijos, nem porres. A mente inaugurou outros lugares tenebrosos. E tampouco me recordo com amor da Copa de 2014, apesar da obviedade traumática. Outros são meus fantasmas, àquela altura.

Eu ando tristíssima e desesperançada, há meses. Mas assisto, e insisto, ao primeiro jogo do Brasil, concomitante ao concerto do Lenine, no Casino.

O telão improvisado, no Estoril, fez jus à empolgação com o Brasil que abria os paradoxos do Qatar. E Richarlison pode reavivar a menina dentro de mim. A menina que ganhou uma irmã, caiu do cavalo, apaixonou-se, sedimentou-se e se separou, nestas copas que haviam, por ela, passado.

Como é delicioso ver mulheres árbitras, num país de misóginos. Como é belo torcer pelas colônias, gigantes pela própria natureza. Tantos paradoxos permeiam o futebol e, às vezes, a história.

Estou lendo Rimbaud, nessa noite de Lemúria em Lisboa. Tudo foi alagado. O futebol só volta na sexta. Um anjo passou por mim e me disse:

– A Copa, aos poucos, desvanecerá. Teus sonhos, jamais. Escreve, pequena.

* Foto gentilmente oferecida por Canato, que pintou, em outras estrelas, as asas do nosso rei.

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Arquivado em Crônica, Textos meus