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Zenith

A João Gabriel Hidalgo

A chegada de Phedro foi deveras sutil. Eu passava, com os dedos em frenesi, as figuras inertes do aplicativo, obviamente inspirado em caça-níqueis, sem buscar nenhuma resposta. A vida se torna desmiolada quando não há encruzilhadas regendo a alma.

Entre as paisagens de mar, os amigos felizes e as notícias da quinta dimensão, avisto um conceito platônico, até então desmemoriado em mim. Tratava-se do segundo discurso de Sócrates, elogio ao delírio.

Baixei a versão eletrônica do livro e o reabitei, em madrigal.

Platão nos recorda que a mania, para os antigos, remetia à arte divinatória, dádiva dos deuses. As epidemias e flagelos convidavam os homens a sonhar profecias e, simultaneamente, descobrir os remédios para as mazelas mundanas.

A natureza delirante pode vir de quatro espécies: delírios limitados ao pensamento; delírios sussurrados pelos deuses; delírios cantados pelas Musas e delírios relembrados pela própria Beleza.

Minha memória, em tons cinzas e tristes, foi ao encontro das sessões presenciais no Charcot, o hospital psiquiátrico, escondido – como a maioria das loucuras – no centro da cidade de São Paulo.

Uma raiva imensa se apoderou de mim. Quantos delirantes divinais não puderam encontrar os dizeres de Platão? Quantos destinos foram dilacerados, por terem escutado as Musas, ou a essência da Beleza? O quão autodestrutivos somos, ao encarcerar essas pessoas, às vezes possuidoras de remédios para as chagas da humanidade?

No dia que veio a seguir, parecia que eu estava mais atenta à minha função inferior sensorial. Os detalhes das ruas me traziam indagações, as conversas desabrochavam em chamados ao devaneio, a imaginação não se opunha mais à realidade. Os outros trazem-nos notícias de nós.

Perdoei, com o Phedro de Platão, tantos delírios, antes considerados patológicos. Aliás, perdoei-me a mim mesma, por ter sucumbido aos olhares, alheios às inúmeras possessões inspiradas pelas musas, pela beleza primeira.

Desde lá, tenho exercido essa prece. No nome do restaurante há um convite à memória e sua deusa, Mnemosyne. Nos letreiros do comboio, a caminho dos oceanos, existem charadas improváveis. Nas cantigas que embalam as crianças ao meu lado, nas marcas dos cafés, nas intempéries e bonanças.

Enquanto eu reverenciar cada milagre que opera a jornada, atravessarei a existência com a bênção das estrelas. E porque eu cri na c0ndição de zênite, fui presenteada com quatro estrelas cadentes, numa autoestrada em paralisia, pelo excesso de automóveis. Para mim, aquele trânsito, antes do avistamento celestial, já era um belo conto de Cortázar.

A ficção, em sincronia à concretude deste plano, é a chave para a vida, inventada.

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Arquivado em Crônica, Textos meus