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A Rainha e a Serpente

A semana já começou com presságios de milagre. No domingo, depois de longa espera, chegou até as minhas mãos outro livro muito desejado: O esoterismo de Fernando Pessoa, da poeta-filósofa-ocultista portuense, Dalila Pereira da Costa.

Segunda-feira, 8 de março, para além da marca indelével feminista, é o retorno do dia triunfal pessoano. Nascimento de Alberto Caeiro, o mestre. Nascimento de Fernando Pessoa, seu escriba.

Quarta-feira foi inaugurada com ares de banquete. Um telefonema astral me surpreendeu. A dor do meu vizinho, graças à perda do seu grande amor, transformaria-se em tatuagem. Devia ter percebido, desde as primeiras horas da manhã, que a existência é capaz de se mascarar em dádivas, se há atenção aos enlevos.

Empolguei-me com a ideia de tatuar, também, o caminho serpentino.

O conceito que me persegue, antes de nascer o mundo.

Numa breve pesquisa, simbólica, reencontrei-me com o painel de azulejos, pintado por Lima de Freitas. Sua versão transcendente acerca do Caminho da Serpente. Ele estudou, com brilhantismo, todos os sinais que trazem Portugal ao berço da Nova Era.

E Lisboa,

sempre,

sempre,

no coração do imediato.

Tive, como é óbvio, a ajuda perfeita. Para que a investigação fosse além, era preciso estar em companhia de alguém que se farta em descobrir os sinais galácticos. Ávido de espantos, como eu.

André.

Os painéis misteriosos de Lima de Freitas residem em uma bela morada, na estação central do Rossio. Apesar de termos apanhado o comboio, incontáveis vezes, eu jamais me deparei com aquelas obras-primas.

Nem o André:

– Como fui capaz de ignorar essas obras, em tantas idas e vindas à Sintra? – Disse-me.

– É chegada a hora! – Retruquei.

Cobrimos os rostos, atamos os nós dos sapatos. Fizemos, minutos antes de partir, um café bem forte. Não havia nada aberto. Nem calçadas, nem jardins.

Descemos as ruas de pedra sabão, entre máscaras, polícias e pessoas amedrontadas. Transeuntes de uma ficção apocalíptica que se instaurou na rua Augusta.

Imaginamos, pois, uma praça, sem Comércio, sem estátuas. Toda esculpida em letras.

Perto de cruzar a rua, um tímido homem persistia na venda de castanhas. Nem frio está mais, nessas horas crepusculares. Pedi sabedoria e proteção, nos arcos encarnados do Rossio. Meu amigo, calmo e emancipado, português, alertou-me, nesse momento:

– Os painéis do Lima de Freitas estão depois das catracas dos comboios. Vamos pedir ao guarda que nos abra os portais, mesmo sem bilhetes para os trens.

Meu espírito humilhou-se, à recusa imaginada. O guarda jamais permitiria que nos transpuséssemos aos comboios, desprovidos de passagens. André, corajoso e implacável, tinha a certeza de que os portões seriam abertos, uma vez que fôssemos verdadeiros.

À entrada, fiquei tímida, cousa que me percorre, ao defrontar-me com estranhos. Meu amigo, meu anjo, retirou o telefone do bolso. Eu o segui, em pânico de estrangeira. André escusou-se ao guardião, com a foto do painel em punhos:

– Peço imensa desculpa, podemos ver as obras de Lima de Freitas que estão naquela parede, logo ali, pousadas no canto esquerdo?

Com ares de castelo medieval, voz de templário e postura hermética, o guarda prontamente nos abriu as catracas.

– Vocês trouxeram tripés para as fotografias?

– Não – respondi – Apenas nossos ecrãs de telemóvel. Estou a pesquisar o caminho da serpente e há, cá, uma obra imprescindível para minha perquisição.

No ritmo vagaroso de um degustar, caminhamos nas paredes exiladas do Rossio de Lima de Freitas.

Ao todo, junto às linhas de ferro, responsáveis pela conexão entre o centro de Lisboa e a estação de Sintra, encontram-se 12 pinturas, abissais. São narrativas poéticas, que oferecem a Portugal o centro da nova dimensão da consciência humana. Todas as imagens estão envoltas em charadas místicas, disfarçadas, versadas.

Flanamos pelas cores de Ulisses, talvez a lenda mais antiga de Lisboa. Depois pelas vestes de San Vicente, em suas naus desanuviadas. Há azuis em Garrett, Vieira e Negreiros. Estrelas tintilam a visão cósmica de Camões. Apesar de subliminar, fica nítido que o artista bebeu Bandarra, nas liras que findam rituais de assombração. Umbrais e merkabas são escancarados, nos traços do Panteão, da Sé e do miradouro Portas do Sol.

Ao chegar no painel protagonista daquela consulta, meus sentidos estremeceram. Estava lá a face de Moisés, com a Torá. Depois a face do poeta, fictícia, no centro da Praça do Comércio, lugar de Dom José, E, no alto da tríade, a estrela e todos os universos possíveis. Libertos pela tinta do Pessoa.

Ficamos a apreciar, por instantes plenos, com o cuidado de não demorar demasiado. Afinal, não é todo dia que somos presenteados com uma gentileza dessas.

Na volta, olhei uma vez mais para a pintura de Ulisses, primogénita:

– André, ainda acho formidável ter descoberto tão tardiamente a história de Ofiusa. Em tempos remotos, a terra onde vivemos era governada pela Rainha Serpente. A cidade se parecia com um oásis, apenas regido por Deusas. Nenhum homem era capaz de conquistar o paraíso matriarcal. Quando tentavam, recebiam o mesmo destino dos navegadores, no encontro das sereias. As deusas eram implacáveis. A fama de Ofiusa ultrapassava os horizontes, até chegar aos ouvidos de Ulisses.

Com navios exaustos e homens famintos, Ulisses ignorou os avisos, blasfemou a hipótese de perder a vida, ofereceu-se à Rainha. Acreditava em seu poder de hipnose. No amor prometido. Seduziu, impecável, a Serpente soberana. Ela, então, dá-lhe o reino, como prova de eternidade. Ele, ao conquistar, vai-se embora.

Descansado.

A fúria serpenteia essa terra, antes abençoada. Seus tentáculos, sofredores, correm atrás da promessa, imortal. Sua dor é tão violenta que delineia as setes colinas, aquelas que tanto nos custam a subir.

André já conhecia bem esta história. Assentiu, com um sorriso. O eco de seus passos reverberava pela fantasmagórica plataforma, até à saída. 

O guarda, elementar, questionou os poemas escritos, os autores eleitos, as cores do Panteão. Abriu-nos as portas, mas, antes, indagou-nos, com a precisão de um feitiço:

– Não sei se é do mesmo autor… Minha pintura favorita, nesta estação, não está ao pé dos comboios, está à saída do metro. Vocês já viram? Querem que eu os leve até lá?

Nossa vernissage inusitada havia, então, ganhado a surrealidade dos romances. Era óbvio que iríamos navegar até o fim.

Uma última vez vimos as luzes verdes das catracas, as risadas feitas apenas de pestanas, os fôlegos interrompidos pela magia.

Depois da liberação do metro, no altíssimo pé direito, lá estavam:

Ulisses e a Rainha Serpente.

O décimo terceiro painel, esculpido pelas linhas, irretocáveis, de Lima de Freitas.

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