Beatrice*

Um feixe de luz, traiçoeiro, invade minhas pálpebras. Um estranho pássaro assusta os resquícios de sonho, senhor dos meus caminhos. Colérica e atormentada, finalmente abro os olhos.

Ao invés de acender o cigarro, sigo os patéticos conselhos do livro de autoajuda americano. Quase oiço a voz da autora, serena e inumana, ao recomendar que anote os pensamentos encharcados pelo inconsciente.

Deitada e, sem poder fumar, olho para cima. Como é mesmo que esses idiotas conseguem ganhar milhões em bestsellers? Descrevem o branco dos tetos, ou telhados encarnados? Não bebem os vinhos, esquecidos por hipnoses de ontem? Por que tenho de segui-los, em pílulas matinais?

Acordei, vi os contornos da casa que escolhi para me recolher. Tudo é branco, sem nenhum contraste de rio à minha frente. Uma janela – será que posso me mexer? – está aberta e os vendavais amaldiçoam minhas roupas, postas à frente da cadeira de escritora.

Acendo um cigarro. Bebo o resto do cálice de vinho. Sou a personificação da anarquia de as autoajudas canalhas. Faço um brinde para todos os malditos que morreram, antes de desmistificar as luzes. Desço as escadas, aperto um botão e tenho um café aguado, mas com pedigree. Sinto saudade dos cafés que tomei com Clarice, às três da manhã, na casa dos meus pais, em 2009. Uma rebelião ensandecida faz-me pegar na caneta, e no caderno.

Entanto, lembro-me do Sidarta Ribeiro, do Bruno Torturra e do Oráculo da Noite. Embora minha revolta, pequena e burguesa, não aliviem a minha dor, eles também me disseram que os sonhos são entidades – agentes transformadores. Calo minha cabeça, rebelde, ainda insone. Pena que já não há mais vinho por aqui.

Sonhei, nestas minúsculas horas, que havíamos conseguido. Eu tenho sonhado com isto desde 2018. Os céus eram tomados por naves multicores. Humanos corriam, desesperados. Eu invocava as serpentes em meus braços, movimentos infinitos. A gente avistava cores que não pertencem à palheta da íris terrestre. As dúvidas, companheiras tão velhas de jornada, iam embora.

Naves e mais naves acompanhavam o ballet, enfim liberto do meu medo de não ser uma boa dançarina. Estilhaços de sons, mais belos e inaudíveis que Chopin, atravessavam o silêncio de todos os humanos.

Ao despertar, depois do gole de vinho, do chafé nespresso e dos dizeres americanos – livro de milhões de dólares – lá estava eu.

Aturdida.

Pensei em Nyx, Hypnos e Morpheus.

Chorei um bocadinho.

Os sonhos superam a liberdade?  Será que somos capazes de redigir nossas memórias?

Se este devaneio for meu último sortilégio, meus futuros navegantes devem ter a certeza. A luz que me guiou foi a Lua Cheia. E o pássaro? O pássaro que me atrapalhou o sono, nunca foi ave, foi a coruja.

*De Matrix (Útero, de ponta cabeça – à Beatrice, a que traz felicidade aos outros).

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