Pessach

Uma espiral no sentido anti-horário sobe pelas minhas pernas. Desorganiza todas as células. Dança, imprevidente, pelo contorno dos ossos, salta no umbigo, cresce e borbulha no chacra cardíaco. Sua cor é dourada. Apossa-se de mim, instrumento, para rodopiar em volta do pescoço. Acelera meus olhos: um está com lentes de contacto; outro insiste na miopia. A energia, bailarina, encontra-se, enfim, com a glândula pineal. Expande-se tanto, tão absurda, tão sincrónica, a ponto de dissipar-se pela coroa da minha mente. O corpo todo estremece.

Aprendi a meditar em Janeiro do ano passado. Havia fugido de Lisboa, com a certeza de ser feliz, em outro sítio. As redes sociais, na altura, só me lembravam dos fracassos, da loucura, da incapacidade de pertencer a este mundo. Desliguei-me, por alguns dias, daqueles sorrisos insuportáveis, das fotos paradisíacas, dos encontros amorosos.

Meditar nada tem a ver com a ausência de pensamentos. Meditar é aceitar que as nuvens passam. É um exercício de desobsessão das ideias. Agradecer a impermanência de todas as cousas. Venerar a eternidade do instante.

Tive a ilusão de que este período de cárcere pudesse trazer à luz a destrutibilidade. Quantos seres humanos já terão passado pela prisão, anteriormente? Navego, embasbacada, pelas mesmas redes sociais que outrora intensificaram minha depressão. Vejo um arsenal de coachs quânticos, sem nenhum estudo ou formação. “Como melhorar sua autoestima com a dança”, “Aprenda a ser líder da quarentena”, “Tome as rédeas de sua vida com o Yôga”, “Aumente seus seguidores com lives”.

Minha melhor amiga me confessou como estão os grupos de whatsapp das mães da escola da minha afilhada. Ególatras, elas clamam pelo posto de mãe da quarentena. Humilham as outras mães, com bonecos feitos de pepino, cabanas educativas, lições de casa em aquarelas.

Escrevi, há muito, quando o despertar me levou aos confins da minh’alma: somos nossos maiores Deuses. As pessoas, no entanto, ainda desejam ser deuses para os demais, esquecendo a si mesmas e sucumbindo aos seus egos.

Que paradoxo incrível! O mesmo ego, frágil e dilacerado, é quem dita as fórmulas irrisórias de sucesso.

Não julgar essas pessoas é o maior desafio para mim, neste momento. Contudo, é nítido que a vulnerabilidade se faz cada dia mais necessária para discutirmos os possíveis futuros do ser humano. Ninguém está tranquilo, nenhuma invertida trará ao seu cérebro as respostas, muitos não têm acesso a verduras para comer.

Desde sábado, quando o portal se abriu, não preciso mais meditar para sentir a eletricidade percorrendo todo o meu espírito, em sentido anti-horário. Como é óbvio, D’us!

A Universa é avessa ao tempo.

Ontem, todavia, acordei completamente derrotada. Os espasmos se intensificaram mais. A poesia cósmica acometeu todo o meu corpo. Não consegui ler uma linha de Foucault, senti-me burra, não tinha dinheiro nem para comprar ovos. Uma tristeza sem proporções literárias me atingiu. Apenas a meditação me trouxe paz, por algumas horas. Pedi perdão à minha professora do mestrado, pois não possuía forças para aproximar filosofia à realidade. E ela, com a nobreza do sagrado feminino, acolheu minha ferida.

Chorei até jogar a lente de contacto no lixo. Como ultimato aos estranhos desígnios dessa missão terrestre, liguei à minha Mamã. O útero, sem respostas, sem receitas, sem vontade de competir, é-me a única salvação.

A Terra, Gaia, Danuih, não espera que sejamos fortes. Ela nos alerta sobre a fragilidade na qual vive, desde a nossa invasão. Pede-nos para, em espiral anti-horária, sustentarmos o renascimento profético.

Pessach, sagrada travessia, é chegada a hora de enaltecer incompletudes.

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Arquivado em Crônica, Textos meus

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