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Laura, minha Deusa afilhada

Tenho medo de dormir cedo, Lalá.

E no escuro

E sapos 

Odeio os sapos e toda a frieza que eles carregam.

Tenho medo de palhaços, Lalá.

da dor escondida nas risadas. 

Tive medo das focas, quando percebi

Que elas não eram golfinhos. 

Gostaria de ser golfinho

E inventar minha língua por ai.

Tenho medo de paralisar, como os lagartos

Ou explodir como os dinossauros.

Um medo, taciturno, Lalá

Eu me apavoro com a ausência das palavras.

Tenho medo da roda gigante, Lalá

De algodão doce e avião.

Tenho um medo, Lalá.

De não sonhar com aquilo que me prometi

ao deitar

Lalá

Há cousas das quais não tenho medo:

O amor

A música

E a solidão 

que nos inaugura, 

quando inventamos uma história

ou a nós mesmas.

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Pierrot

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“Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos têm a cor de água) e sorri com o mesmo beatifico sorriso de seu bisneto recém nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero.”

– Eduardo Galeano em O livro dos abraços.

 

Uma caixinha de música, às vezes, dá corda a mim.

A poesia gorda me envaidece com seus versos, perfeitos.

Eles vêm, sonhos oraculares,

em cores de Van Gogh e voz do Salvador.

 

É difícil dar-lhes nomes,

ou decidir o primogênito.

 

Gostava de morar na beleza primeira que tem as letras,

antes da oração.

 

Uma boneca antiga visita-me a infância.

Faz do passado uma colheita de outono.

 

Uma caixinha de música,

às vezes,

dá cordas em mim.

 

Manipula meus títeres anteriores.

E vai-se embora como a nuvem derradeira

que insiste em acariciar o Tejo.

 

Uma caixinha

de música,

às vezes,

desperta o pierrot aprisionado no brinquedo.

 

Dilacera as dores cicatrizadas.

Dá risada dos projetos juvenis.

 

No dia em que a caixinha de música for abreviada pela obviedade,

talvez seja feliz.

 

A memória,

Poética,

é sempre lapso

dos possíveis futuros.

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Das saudades platônicas

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“Um poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa.” Herberto Helder

A infância é um lápis que desapontei pelo caminho. Será que já estava, naquelas décadas atrás, a colecionar, instantes primeiros, toda essa poesia que há no mundo?

Ouvia, nos corredores da livraria, àquelas personagens que se debruçariam em meus dedos, anos depois? A meninice seria apenas uma insídia – brincadeira de mau gosto – quando me tornei poeta?

Ah, felicidade indubitável de abraçar os livros! A sensação extraordinária de investigar os velhos escritores, a mentir os fatos, a assinar literatura, em realismo mágico. Travestidos de conversas.

Quando rebobino a mim mesma, hoje, sinto que existia qualquer coisa de triste. Percebo que não me satisfazia com a realidade, desde sempre. A madrugada já me tinha mais coragem. As palavras faziam cócegas – maldição abençoada.

A poesia estava ali, à minha espera, na esquina de casa, quando voltei da maternidade. Rua Morgado de Mateus. Só que a arte é muito lenta e os olhos demoram para entender a miopia que trazem os versos, no cansaço dos séculos.

Neste momento, dou-me conta de toda a servidão que se alastrava no horizonte, no dia em que vim a esse mundo. “Estás condenada à poesia!”

Contudo, esta semana, ouvi do grande poeta Carlos Felipe Moisés, que a poesia é resistência. Que ninguém nasce e elege poesia como fonte de felicidade. É indispensável a luta, para se lambuzar do universo. É necessário ter persistência, obstinação e teimosia. Loucura.

Talvez eu soubesse, criança, minhas inclinações escandalosas. Só aprendi, alhures, que toda saudade é fruto do imponderável. Basta sonhar para encontrar o Olimpo, e suas sombras. Seria, enfim, toda saudade, platônica?

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Sobre o voar

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Eu sempre organizava a casa para a chegada do Tom. Comprava leite Ninho, lia a programação infantil do fim de semana, punha mais água nas plantas. O ritual de sua vinda me fazia um homem mais sereno. Deixava de lado as noitadas regadas à gin tônica ou uísque sour. Esquecia-me do computador, dos meus funcionários, de tomar o antidepressivo.

Às vezes, confesso, ainda me dá medo de como será nosso encontro. Nem sempre estamos em plena sintonia. Por mais que nos esforcemos, os dois, há a estranheza da ausência, o escândalo da demora, a vertigem de me ver, em outros olhos.

O Tom mora com a mãe, no Recife, desde os dois anos de idade. A cada quinze dias ele vem me visitar em São Paulo. Este fim de semana era especial – feriado prolongado. Tínhamos cinco dias para desbravar dinossauros, visitar planetas pueris, desenhar universos encantados.

Decidi convidar duas amiguinhas do jardim de infância, no sábado. Sinceramente, não sabia se elas ainda lembrariam dele. Quando se tem dois anos e o cérebro ainda em construção, é impossível discernir qual lembrança escolherá a memória como casa.

A Beatriz e sua mãe chegaram pontualmente às três horas. O sorriso da pequena era capaz de me salvar de todos os pesadelos que tive, quando criança. A inesgotável felicidade de quem vive os instantes em doses homeopáticas. Sua alegria em ver meu filho, austero, menino, transbordava os quartos e os contos de fadas. Paixão mesmo.

A outra menina demorou mais de uma hora para se juntar àquela sala de verdades inventadas. Sua mãe, Maíra, uma socialite que não estava acostumada a dirigir o próprio carro, tivera dificuldade em estacionar. Eu moro ao lado do Morumbi e era final do Campeonato Paulista.

Enquanto a Julia, rebenta da burguesa insossa, não chegava, parecia-me óbvio que Beatriz se esbaldava na exclusividade com o Tom. Envergonhadíssima e alerta. Elegia todos os seus brinquedos preferidos. Enredava desvarios de eternidade. Sorria, tímida, à espera da aprovação da mãe que, estarrecida, buscava alguma cumplicidade no meu olhar.

A tarde durou menos que um pôr do sol de outono. Quando me deparei com o relógio de mesa, uma relíquia vintage comprada na semana anterior, já passava das oito. Repletas de brigadeiros e poesia, as meninas se despediram do Tom e de mim. Reparei nos sorrisos escondidos na íris de Beatriz. Sua mãe, acanhada, veio me confessar, baixinho:

– A Bia fala toda hora do Tom. Ele é o primeiro amor da vida dela, mesmo sem vê-lo.

Atordoado, passei a noite pensando naqueles primeiros afetos. Amores que levamos em formas de nuvens. Amores que se dissipam nos azuis e esquecemos para sempre.

No dia seguinte, levei o Tom para Guaecá. Achei que nossas horas seriam melhores, longe do caos da Pauliceia. Lá, distraído pelo cheiro de algas e mergulhado nos escritos de Henry Miller, recebi um vídeo da mãe da Bia. Elas haviam estado no Borboletário de São Paulo, naquele momento. Uma borboleta, silenciosa, atreveu-se a pisar no nariz da menina. A mãe, orgulhosa, registrava a doçura com o celular, quando a filha lhe disse:

– Borboleta, quero que você vá até o Tom, que mora no Recife!

Uma delicadeza enorme e corroída me suspendeu em quimeras. Como é possível uma criança sentir esse absurdo gratuito que é o amor, nessa idade?

Mostrei o vídeo, imediatamente, ao meu filho, exausto de oceanos. Ele, menino, mostrou-se profundamente desinteressado:

– Papai, eu detesto borboletas!

Senti-me um imbecil. Por ser homem; por entendê-lo; por testemunhar tamanha atrocidade, vinda dele. Meu pequeno paraíso repetia as mesmices que eu tanto abominava. Onde havia escondido sua sensibilidade?

Passei o domingo inteiro e boa parte da manhã de segunda a explicar ao Tom sua impassibilidade com a amada. Argumentei que nada era relacionado às borboletas. Só existia o desejo de endereçar saudades, algures.

Não tive a certeza de que ele me entendeu, até o fim do dia. Entramos no mar, ainda morno de sol. Uns quatro peixinhos, gêmeos, invadiram a paisagem. Eram amarelos com detalhes rosados. O Tom, inebriado pela possibilidade de agradecer, tentou encarcerá-los com os dedos, miúdos. Falou, com a liberdade dos deuses:

– Vou guardar esses peixinhos para a Bia, papai. Quem sabe ela também goste de voar para dentro!

Embasbacado, eu não consegui pensar em outra coisa: tornei-me pai para regressar ao Nunca.

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Infância

infancia

Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.

O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.

 Paulo Mendes Campos

 

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Quero ir buscar quem fui onde ficou.

 

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

Fernando Pessoa

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Pequenas ternuras*

Paulo Mendes Campos

Quem coleciona selos para o sobrinho; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se se detém no caminho para contemplar a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas ou de já não aguentar subir uma escada como antigamente; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso; quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade; quem se deixa tocar pelo símbolo da porte fechada; quem costura roupas para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar, já quebrando a cerimônia com um início de sentimento: “Meu pai só gostava de sentar-se nessa cadeira”; quem manda livros para os presidiários; quem ajuda a fundar um asilo de órfãos; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem compra na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias de um amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque para brincar com amigo ou amiga distante; quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas; quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha; quem se desata em riso à visão de uma cascata; quem não se fecha à flor que se abriu de manhã; quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes; quem se perturba com o crepúsculo; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente a pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga perceber o “pensamento” do boi e do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre.

* Essa pequena ternura é a Bella, filha dos meus amados primos, o Dani e a Nicole. Quantas vezes eu não fui salva pela sua voz…

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Olinda que amanhecerá em mim

Banhos de mar

Clarice Lispector

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?

De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.

Saímos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.

Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: “Olhe um porco de verdade!” gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras da minha família, que de vez em quando me dizia rindo: “Olhe um porco de verdade.”

Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.

Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.

No bonde mesmo, começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava.

O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.

Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.

Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.

Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ía secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo.

Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura.

Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.

A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?

Nunca mais.

Nunca.

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No quarto do meu coração, menino…

Contigo aprendi a temer as claridades leitosas, títeres travestidos da escuridão. Abandonei os primeiros pensamentos, esboços de mim. Não mais atuo em monólogos para plateias vazias. Fardos só existem para nos lembrar que a alma carrega sempre a possibilidade de tocar a erudição simples… Em nossa relação – criador e criatura – tu estás ali, à minha frente, desdenhando tudo aquilo que me foi rebuscado.

Meu Amigo, Meu Herói

Gilberto Gil

Oh meu amigo, meu herói
Oh como dói saber que a ti também corrói
A dor da solidão
Oh meu amado, minha luz
Descansa tua mão cansada sobre a minha
Sobre a minha mão
A força do universo não te deixará
O lume das estrelas te alumiará
Na casa do meu coração pequeno
No quarto do meu coração menino
No canto do meu coração espero
Agasalhar-te a ilusão
Oh meu amigo, meu herói
Oh como dói
Oh como dói

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Toda saudade é uma espécie de velhice…

“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

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Escova

Manoel de Barros – Memórias Inventadas*

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

* Foto: LiliRoze (Juquehy)

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A incapacidade de ser verdadeiro

Carlos Drummond de Andrade

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo.

Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico.

Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:

— Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia.

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As Fabulosas Cores de LiliRoze

IX
“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.”

Manoel de Barros

O instantâneo captura a plenitude. É assim que podemos descrever o belíssimo trabalho de LiliRoze, fotógrafa franco-suíça que chega a São Paulo na próxima semana para inaugurar sua primeira exposição no Brasil.

Em 2009, ela ganhou o maior prêmio de foto de moda na França, pela APPPF – Agence Pour la Promotion de La Photographie Profissionelle en France. Sob a lente da câmera Sinar 4×5 e filmes de Polaroid, LiliRoze expressa suas visões coloridas ao mundo. Para ela, todo o seu feito é imbuído de intimidade. A ideia do desnudamento, da fragilidade e do abandono são suas maiores fontes de inspiração.

A predileção pela fotografia não aconteceu casualmente. Desde muito pequena, LiliRoze estava aos pés de seu pai, ansiosa para ver a mágica transformação que acontecia na banheira onde as fotos em preto e branco eram reveladas. Perplexa, ela não conseguia compreender como aqueles simples papéis se modificavam tão rapidamente, em tantos universos.

Só a imaginação infante pode trazer uma tradução precisa das obras da fotógrafa. Esse saber primitivo, esse olhar primeiro sobre as nuances da matéria. Só a criança tem a capacidade de tornar os instantes infinitos. Parece que, a cada retrato, LiliRoze reencontra sua casa natal.

Revisitar a própria casa! Reviver os cheiros, as luzes, os dias e as noites. Quando um artista devaneia intimamente sua casa, nós também somos invadidos por uma visita, transportados às nossas casas, aos nossos devaneios. A imagem da casa abandonada, da casa esquecida, da casa coberta pelo pó e por panos brancos já não pode mais existir. As janelas se abrem, permitindo que a luz possua a sala. Os barulhos aparecem novamente, as trepadeiras ressuscitam em caracóis as paredes, e podem ser verdes, profundamente verdes. A casa está completamente povoada. De novo.

Deixar-se entorpecer por toda a profundidade de um instante é um dom que precisa ser lapidado. Se o instante não é vivido em toda sua imensidão, não pode existir a imagem poética. E, para além do instante, o artista-criança também tem o poder de transformar, através da imaginação ativa, os tédios em pinturas, os objetos em moradas.

LiliRoze confessa, pois, que toda a sua obra está mais próxima do imaginar do que da realidade. As cores, assim, podem criar histórias originais. E o impressionismo lhe salva da crueldade mundana. A experiência onírica a suspende dos horrores concretos.

Para definir suas influências, ela cita Paolo Roversi, Sarah Moon, Joel-Peter Witkins, Duane Michals. E afirma que todo fotógrafo é um agente de novos horizontes. É impossível fazer arte sem trazer consigo loucuras e fantasias. Viver é absolutamente fictício.

Dessa forma, justifica também a escolha “primitiva” da Polaroid: ela é capaz de apreender acidentes inestimáveis para as fotografias. O leve flou (desfoque) acontece também pelas árduas opções. Ela trabalha com pouca luz, sensibilidade de filme baixa e longos períodos de exposição. Estará LiliRoze certa em negar a digitalidade atual? Vale a pena haurir seus portraits e tirar as próprias conclusões.

Exposição AS FABULOSAS CORES DE LILIROZECoquetel de Inauguração: 8 de abril das 19h às 24h. Exposição: De 9 de abril a 12 de maio, no Espaço de Arte Trio – Rua Gomes de Carvalho n°1759, Vila Olimpia – São Paulo. Telefone: 11 3757–3333. Horário de funcionamento: 12h às 15h. Grátis.

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Redução Fenomenológica: O Velho e a Lupa*

“Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura…”.

Alberto Caeiro, o mestre de Pessoa

Os anos foram ficando cada vez mais silenciosos para o velho funcionário da livraria. As roupas encolhiam o corpo alquebrado. As horas, empoeiravam-se pelas frestas da janela. No entanto, pela lupa, ele levava a letra à imensidão. E descobria-se numa terceira infância. Já inundado de madrugadas e vazios, inebriava-se em chuvas e acariciava as estrelas. Não pelos tolos desejos atendidos, mas pela lembrança dos sonhos estarem ali, junto ao espaço sideral.

Agora sabia: os grandes holofotes só cabem nas nádegas dos vagalumes. Enquanto suas medidas iam diminuindo em velocidade colossal, a imagem mínima trazia consigo a concentração do devaneio. A página, condensada, era um rosto de intimidade. Porque o poeta não rebusca os desvarios para ser belo. Da simplicidade – invisível a olho nu – brotam universos de destinos. Os astros têm seus núcleos como referência. E em cada átomo existe um mundo, esperando para ser sonhado.

O velho, miniatura de si, e o livro. O velho, menino, diante do diminuto. E a lente, larga, incomensurável. Homem e infinito se tocam na menor das palavras,  instante de comunhão que atinge a tranquilidade pueril. Ilimitados por um tempo que já não há.

O Cosmos, pois, presentifica-se na fotografia. Um olhar esgazeado antecipa, pré-vê, pré-sente tudo aquilo que o mundo canta. O velho é a voz majestosa da poesia em plenitude. Ele precisa chegar tão perto das coisas que deseja fundir-se com elas por alguns segundos. O distanciamento impossibilitaria quaisquer versos autênticos. É na pequenez superlativa – como a infância – que a matéria poética é encontrada. E a vida, enfim, toca a redondeza. Cíclica, como são todas as quimeras.

*Essa foto fantástica foi tirada pelo meu amado amigo Raphael Murena, durante sua viagem à Europa. Fevereiro/2010

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Apneia: Poética do Devaneio

Gaston Bachelard, mestre

“Todas essas luzes psíquicas dos nascimentos esboçados iluminam um cosmos nascente que é o cosmos dos limbos. Luzes e limbos, eis a dialética da antecedência do ser de infância. Um sonhador de palavras não pode deixar de mostrar-se sensível à doçura da palavra que põe luzes e limbos sob o império de duas labiadas. Com a luz, há água na claridade e os Limbos são aquáticos. E sempre haveremos de encontrar a mesma certeza onírica: a Infância é uma Água humana, uma água que brota da sombra. Essa infância nas brumas e nas luzes, essa vida na lentidão dos limbos, dá-nos uma certa espessura de nascimentos. Quantos seres temos começado! Quantas fontes perdidas que no entanto têm corrido! Então o devaneio voltado para o nosso passado, o devaneio que busca a infância, parece devolver vida a vidas que não aconteceram, vidas que foram imaginadas. O devaneio é uma mnemotécnica da imaginação. No devaneio retomamos contato com possibilidades que o destino não soube utilizar. Um grande paradoxo está associado aos nossos devaneios voltados para a infância: esse passado morto tem em nós um futuro, o futuro de suas imagens vivas, o futuro do devaneio que se abre diante de toda imagem redescoberta”. p.106-107

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O menino

Encontrei outro dia um menino que me fitou com cumplicidade secular. Tem a pele branca. Cabelos ralos, castanhos. A vulgaridade do azul não toca seu olhar. Porque muito pouco interfere a beleza improvável da sua íris.

 

O azul dos olhos do menino é rigorosamente secreto. Está todo envolto em silêncios. O azul dos olhos do menino são portas abertas para uma solidão em clausura. São aquários inabitados que ainda sonham com peixes. Brutalmente dócil.

 

O menino me contou da melancolia que o dilacera por não ter companhia nas manhãs frias da sua terra. A neve o faz desencontrado de quimeras.

 

Abandonado pelos pais – trabalhadores desavisados dos fantasmas da infância – o menino sonha com companhias imaginadas. E, ao se saber criador do seu universo, sofre. Um mero afago o faria doar aos órfãos toda sua capacidade de inventar.

 

Até o ouvinte menos atencioso seria petrificado pela amargura de seus dizeres: a gente tem vontade de entregar toda a alegria ao seu futuro passado.

 

O que o menino não sabe agora é que as feridas são depurações da nossa alma. Atrás das queimaduras há epidermes rosadas. Seu duro aprendizado fará dele um melhor pai. Ele terá a família sempre à mesa.

 

No cerne das suas lágrimas há uma liberdade, uma anárquica chance de construir o seu destino. Para além dos traumas irreversíveis existem horizontes de mar.

 

Eu, como não pude dizer nada disso ao menino, escrevo para elaborar a minha angústia de ter sido feliz. Com muito medo de que essa felicidade desesperadora me impeça de poder escolher meus trilhos também. Porque só a tristeza é senhora do mudar.

 

Senti, finalmente, a inveja pesada: não dos seus olhos azuis, mas da minha comiseração. Porque a cicatriz é a única pele que conta uma história. E são as histórias quem nos impedem de cair no esquecimento.

 

Enquanto isso, o menino espera a noite acabar para certificar-se de que não havia bicho papão. E, sem se dar conta, o menino estará condenado a amar a noite mais do que todas as mulheres de sua vida.

 

Eu queria dar-lhe, menino, saudades de balanço. Roubar lindas palavras como se roubam flores. Só que as flores são deveras sentimentais para acalentar seu espírito. Eu queria furtar sonhos de cantigas de ninar. Mas nós dois conjugamos a língua das fábulas.

 

Compreendo, por fim, o sentido último do nosso estranho reconhecimento. Você é uma narrativa que não pode morrer como as suas esperanças, ao final de cada tarde. E isso eu posso fazer. Escrever-te. 

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Sobre cata-ventos


Estou farta da escrita rebuscada. Alheia às difíceis palavras adultas, às jornadas maduras, à literatura anciã. Eu só quero, esta noite, estar no colo de uma poesia criança que ensope os devaneios em simplicidade.

Luto árdua e diariamente contra tudo o que carregue etiquetas. Muitas vezes a batalha é desleal, posto que creio no efeito das dificuldades. Só que agora me dei conta – porque sou uma pessoa perlongada – de que nada vale poeticamente senão em nudez absoluta. A sabedoria é crudívora.

A poesia verdadeira mora em minha casa de bonecas. Seus versos miudinhos têm dedos curtos demais para acertar uma trança em simetria. No entanto, ela alcança com precisão os nós dos cadarços coloridos.

Suas estrofes são floreadas por estalos, brotos de maria-sem-vergonha. Têm olhos descerrados, rebentos. Como se a inocência tivesse sido violada por outonais crepúsculos. E, ao mesmo tempo, está acorrentada à dor infante da eternidade. 

Ela anda a embebedar-me em longínquas viagens pelo chão do quarto. Para meu espanto de gente grande, não há silêncio ou solidão que a incomode. São, ao contrário, parte dos cenários, eixo dos castelos, essência dos bichos inventados. Porque não é trânsfuga da sua condição. Esses medos não habitam os hemisférios pueris. Brincar desacompanhado é cata-vento. Só é preciso um sopro para existir vida.    

Procuro perscrutar o que a poesia menina balbucia. E ela não responde mas açucara as minhas imagens. Depois, exausta de perder-se em bosques intransponíveis, adormece. Prefere dormir com o estrepitar da chuva. Não pela obviedade do ninar – essa melodia lugar comum – mas porque sabe que na chuva há companhia para atravessar os escuros.

Vejo-a resfolegar o mundo onírico. Descubro sua pele. Ela está repleta de machucados azuis. Aqueles que se aperta com prazer para recordar que algumas dores são doces. E que, passado um segundo, não doem mais.

Tento tocá-la. Imediatamente esquivo-me. Sinto-me desguarnecida. A meninice poética assusta mais do que o espectro do envelhecer. Assim, ela escorrega de mim em cambalhotas e carrosséis. Eu aceito sem questionar. Pois sei. O dia em que meu escrever atravessar o oráculo da infância, estarei pronta para deixá-lo. 

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Sobre os dentes de leite

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“Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda”. Clarice Lispector

 

Eram quase três horas da manhã. Tragávamos o cigarro que religiosamente precede nosso adeus. A conversa, galáctica, já irrompia nebulosas. A fumaça alcançava – braços longos que tem – satélites e órbitas inabitadas. Íamos juntas, enlevadas. Pejadas estávamos, gordas de madruguez:

– Sabe, amiga, eu nunca gostei da multiplicação. Quando estamos multiplicando, na realidade há uma repartição. Tornamos as coisas pequenas. A essência esquece de si, fragmentada em minúsculas parcelas.  

Quanta sabedoria despontava em sua confissão! Fiquei cerca de dois segundos estacionada naquela frase. E respondi, cúmplice que sou:

– É por isso que os únicos providos de alma são os números primos. A eternidade é divisível.  

Imediatamente, ficamos nítidas. As miopias cediam, uma por uma, lugar para os epífanos sentidos. A aterrisagem do olhar primeiro nos permitia navegar águas mais foscas… Dissertamos matematicamente acerca das relações e das suas raízes quadradas. Inserimos cada ser humano na indubitável condição. Só somos repartidos em nossa própria unidade.

Por qual razão, números primos que somos, tão facilmente nos multiplicamos nas relações com os outros? Não há deveras verticalidade nos humanos? Os trilhos não são supostamente  preenchidos em horizontalidade? A harmonia cósmica não reside nos espíritos pensantes?

Seria preciso acender mais um cigarro. O diálogo era, naquele instante, ectoplasma. O simulacro dos relacionamentos mais uma vez tecia os pensamentos. Felino, ronronava entre as ideias, aconchegando-se nas memórias mais longínquas. Cigano, roubava-nos a racionalidade. Por que, meu Deus, por que vivemos constantemente em estressantes movimentos de gangorra?

Quanto mais recordávamos nossos relacionamentos – fossem eles de amor, de amigo ou de escárnio – mais óbvias íamos nos percebendo. Ao revisitar a nós mesmas, nenhuma comunhão oblíqua havia sobrevivido com ternura. Todas estavam trancafiadas em pesadelos, empoeirados conveses da lembrança.

Todavia, nem tudo era carregado de maledicência. Havia também aprazíveis resgates. Às margens dos envolvimentos medíocres, nasciam delicadas reminiscências. Eram devaneios das relações aprendizes. Encharcadas de lepidez, indissolutas, primas. Indivisíveis.

Desvelado o grande mistério, era fácil compreender. Um manancial de descobertas sobrepujava-nos. A clarividência enfim tomava as fumaças e concretizava-se, sincrônica. Como era lindo estar em posse de tão precioso pecúlio!

A felicidade residiu em nós apenas quando estivemos na condição de alunas. Ah, a doçura do desconhecimento! Os náufragos personagens que mereciam morar nos sonhos eram aqueles que acordavam as nossas verdadeiras paixões. O resto, o resto cobria-se inteiramente em sofismas.

Infelizmente, poucos são os homens que revelam-se cândidos. Equivocadamente precisamos nos afirmar em maestria. A ignorância aparece como desvio, estupidez, fraqueza. O que há de errado em reconhecer-se na incompletude? Por que a nossa falta de luz denota tamanha humilhação?

Naquela madrugada, algo fora despertado dentro de mim. Selei, calada, um pacto para toda a minha jornada. Tenaz e silencioso. Quero tudo o que seja decidual. Nada além do que uma vida entre dentes de leite.           

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Rodinhas de bicicleta

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Negros e longos cílios molhados. Protegiam com a força e inquietude das águias os olhos marejados da pequena menina. Os cabelos presos, o biquíni, a manhã que ardia no Recife. Mas não havia nela o alvoroço do mar, a ânsia da água. Espreitava, triste, uma última vez. As gorduchas mãos cerradas, num mudo afago sobre o tecido borrachudo. Era a maneira infantil de perpetuar a existência em sua pele. Sentia o amputar das pernas.

Na esquina, os adultos. Esperavam o adeus. Até dava para sentir o deboche deles – aquele esquecer típico das pessoas mais velhas. Riam-se internamente. E toda criança percebe que a julgam menos habilitada, inexperiente.  O tio da pequenina, eleito por ela, aguardava impaciente. Nada entendia daquela partida:

 – Pronto! Agora você pode tomá-la de mim.

A saudade nunca chegou a habitar a miúda, depois daquele instante. Foi uma fração de segundos. Recordou-se do mar. O céu azulava seus pensamentos pueris, cobria-os com castelos de areia. A lembrança da chupeta caramelizava em seu espiríto. Mas não doía. Todo um doce tilintar encharcava o Universo. Sua primeira independência era enfim consumada.

Tempos depois, uma febre – as crianças são mais abertas – apoderou-se dela. Submergiu em pensamentos de morte, aquela menina. Entre delírios e impotência. Implorava que delebassem a enfermidade de suas juntas.

Como era lindo ter a mãe a preparar o leite bem quente, a canela em superfície, uma colher mergulhada em mel – esse ser feito da robustez açucarada. O segredo da receita só existia no epílogo. Uma, e só uma, colher de conhaque. Sua dependência era agora sinônimo de cura.

Um dia, porém, a temperatura  se elevou. O corpo todo a tremer. Encontrava-se sozinha. Não havia quem seria capaz de matar o silencioso exaspero. Podia, entretanto, resguardar sua alma. Nada havia de ser, aquele ardor nas pálpebras. Nada havia de ser, aquela calidez no hálito. Nada havia de ser…

Só lhe era preciso estar em posse daquela unção. Sabia tão bem aquela receita. Pôs, estufada em coragem, a panela no fogo. Ai meu Deus, como foi bom deleitar-se em si mesma! E pensou como um dia poderia ser ela a protagonista, a curandeira milagrosa. Sonhou com os filhos que dela tomariam a mágica poção. Sentiu livre, uma segunda vez. Insubordinada.

Só que a trajetória é óbvia. Vieram as mamas, doloridas e pequenas. A encardida obrigação do crescer. Ossos maiores que músculos, os amores envoltos em Platão. Fulguravam em seus lábios negações, desprezos e culpas.

A menina não mais podia ser voltívola de suas travessuras. Sua vida, como são as vidas humanas, transformou-se num esfuziante roteiro de cinema. Empanturrada sentia-se diante de personagens velozes, felizes, vergonhosos, inacabados.  Assustada pelas sombras, desejava eximir-se.

Estava farta das dores e dos remédios. Da pequenez que se apodera da íris, quando chora por horas seguidas. A memória, no entanto, fez surgir em seus poros, a terceira e grande emancipação. Ora mulher, ora criança, tudo absolutamente em confluência. Ah, suas tardes no parque! Sonhos dos seis ou sete anos. A imagem, obscenamente poética. Ela, à deriva. A longínqua dança das rodas. Os pedais em comunhão com o corpo. O medo. Haviam decidido que era hora de tirar as rodinhas da bicicleta. Acreditou na firmeza dos dedos beneméritos. Contudo, às costas, viu-se a pedalar com suas próprias pernas. E no chão esborrachou-se.

Desabou, mas, alheia ao fracasso, subiu novamente. E novamente acreditou que teria o suporte paterno. Em poucos segundos, ao olhar para trás, viu que era ela mesma a equilibrista.

Compreendeu, por fim, o valor da escora e da independência. As rodinhas propriamente ditas nunca mais estariam lá. Todavia, a nitidez vívida de sua promulgação. Porque passamos a vida a tirar essas rodinhas, a cair e experienciar uma autonomia triunfal.  

 

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