Entre as árvores

 

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Estou um tanto obcecada com a idéia de inveja. A princípio e para causar uma sensação indigesta na leitura, tenho inveja daqueles que têm pequenos cadernos e canetas em suas bolsas. Eu precisava ter chegado um momento antes para não perder a espinha dorsal deste texto…

Tenho pensado muito nesse tema e há tempos ensaio seus contornos em papel. A idéia de dissertar sobre algo tão humano e tão inexplicável é tarefa para poucos. Eu, metida desde pequenina, dou-me ao luxo de navegar suas entranhas e de expor minha opinião. Quero logo que a idéia desocupe minha cabeça, para que eu possa pensar em coisas mais bonitas.

Recolhi, ao longo desses dias, todos os fragmentos em que a espaçosa dita cuja estava aqui, dançando por meus pensamentos. Quais eram as minhas invejas? Quais eu era inapta a compreender?

A inveja mais doída que eu tenho é de não ser uma pessoa zen. Venero aqueles que vivem realmente em cumplicidade total com o Cosmos. Não falo de nada parecido com neo-hippismo burguês – defectível e repugnante. Falo de Manoel de Barros, grande companheiro das formigas. Desvenda a Via Láctea através de um ninho. Proprietário de uma profundidade exageradamente simples. Gênio.

Se eu fosse descrever todas as minhas invejas literárias, não poderia mais fazer nada – e não teria nenhum sentido para alguém que as lesse. Então, genericamente, tenho inveja dos versos sangüíneos, das palavras exóticas pinceladas no lugar preciso da frase, das vírgulas galopantes e de devaneios de nudez. Olho todos os artistas humanos e os reverencio. Perto deles sou apenas um adulto trôpego, tentando engatinhar com destreza.

No que diz respeito ao humor também posso confessar. Morro de inveja das pessoas que, sem o menor esforço, sem arquitetura ou planejamento minucioso, conseguem ser engraçadas. É um milagre para os ouvidos. Levaria as indústrias farmacêuticas à falência. Como não posso sê-las, busco estar sempre perto delas, grandes bálsamos para o coração.

A inveja nada mais é do que pretender o que nos falta. Depositamos a cura naquilo que o outro é senhor. Só que, no momento de senti-la, seria impossível possuir o atributo cobiçado. A inveja é gula de engolir os pequenos trejeitos de alguém, com uma voracidade digna dos consumidores obesos de fast-food.

Não suporto conceber a inveja de outra pessoa. Inteira. Como é possível desejar um rosto que não lhe pertence? Imagine-se olhando no espelho e, exasperadamente, não achar um traço sequer que lhe pareça familiar. Também há pessoas que têm inveja dos relacionamentos dos outros. Como podem se sentir diminuídas por laços que são protagonizados por terceiros? Não entendem que só sendo elas mesmas poderiam vivenciar uma completude?

Se eu sou uma amendoeira, posso admirar as flores do Ipê Amarelo. No entanto, estou absolutamente impossibilitada de ser Ipê. Por isso preciso resgatar todos os nutrientes da minha terra – aqueles pequenos duendes que constituem a minha alma – e tentar ser uma amendoeira fortalecida. Necessito de raízes profundas e ao mesmo tempo serenas, para agüentar o desapego do outono e a renovação subjacente do inverno.

É esse ódio de não ser um ipê que estremece as relações humanas. Ao invés de olhar para as incríveis e inenarráveis possibilidades da amendoeira, eu discuto com Deus sobre flores amarelas. E grito a ele: “Também poderia ser um Pau Brasil! Por que sou obrigada a conceber esses inúteis frutos?”

Pode parecer muito engraçado, quando olhamos figuradamente para essa imagem. Todavia, eu vejo estilhaços de inveja por todos os cantos onde passo. Desvio meu peito daqueles que se apresentam mais imponentes, mais nítidos, mais endurecidos, fatais. Sei que muitas vezes sou atingida por outros projéteis, travestidos de doçura e colo. Minha única defesa é tomar posse de uma atenção que flutue e que invada as entrelinhas.

E tenho um segredo para desamarrar as minhas próprias concupiscências. Vivo o Ipê, o rosto bonito, o relacionamento perfeito, a felicidade plena? De forma alguma. Se construo um personagem dono de um talento único, é de lei abrir mão de todas as outras dádivas que não estavam no solo, no instante em que ele foi fecundado. Mesmo assim, outros personagens virão, ávidos de sonhos e deficiências, exatamente como deve ser.

Confesso, contudo, que eu queria mesmo era ser um Chorão. Porque ele é a mais bela pintura da melancolia despretensiosa.

 

 

4 Comentários

Arquivado em Textos meus

4 Respostas para “Entre as árvores

  1. HELL

    Gostei. Gostei muito das figuras, das imagens. Não gosto de Lya Luft, mas conheço pouco. Culpa dela, que publica coisas na Veja… hahahah
    Beijos

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  2. marilia

    E inveja de gente leve? Que não encana com as coisas… A catástrofe acontece mas a pessoa tem a LEVEZA de dizer: “Pois é, errei, acontece” e não fica se martirizando para sempre. Acho que essa é a minha maior inveja, Má. Leveza. O bom disso, é que o que a gente ainda não tem, tem a possibilidade de construir.
    🙂
    Beijos
    Mazinha

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  3. Pingback: inveja « Ostrinta's Blog

  4. Luiza

    Oi Mariana, cheguei através da Cris. Lembro de ter lido o teu TCC sobre o Fernando Pessoa na faculdade e adorei. Parabéns por essa maturidade na escrita que é evidente em alguns dos textos seus. Ofereces imagens ao leitor que fica encantado diante dessa lucidez, é com intimidade e profundidade que escreves. E gostei muito.

    Beijos
    Luiza

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