Avessos

Há exatas três semanas ganhei um presente musical. Convidada por uma querida amiga do mestrado, fui prestigiar o talento e a leveza de Ceumar. Infelizmente não foi ontem. Não encontro-me imediatamente posterior àquela noite deliciosa. O olhar tilintou há mais tempo, aveludada ternura. Mas a nitidez da lembrança é hoje. Guardo debaixo de frágeis cadeados de brinquedo. E reservo o deleite com lentes do agora. Porque o momento é vívido hoje.

Sentamo-nos tímidas, minha amiga e eu, na multidão de fantasmas silenciosos. Confesso, apesar da inelutável melancolia do vazio, embriaguei-me com goles de orgulho, por fazer parte daquela pequenina plateia.

Foram algumas horas, apenas. Um enxerto na alma, diria. Mais os olhos meio verde-amarelo, a aura azul. Um transbordamento de estrelas formigantes. O corpo todo cheio de gratidão.

A voz dela enlevada pelo timbre dos risos. Íntima, seu enredo cobria-nos de pijamas perfumados em tangerina. “Conta suas histórias!” – dizia o público, abobadado em doçura. “Canta a nós sobre os rabos de cometa”.  Éramos sábios hedonistas a saboreá-la.

E veio a canção inesperada: “Por isso deixo aqui meu endereço, se você me procurar eu apareço. Se você me encontrar, te reconheço”. A letra, da poeta Alice Ruiz, é fruto de um mapa astral. Ela reconheceu a cantora em seu avesso cósmico. Ceumar explica, pois, em pureza de vagalume: muitos já se apropriaram da música, acreditando tratar-se de amor. E depois, sem intervalo, acha graça.

Desvanesci naqueles segundos. Porque minha obviedade já tinha tomado aquelas notas também. Era a banda sonora mais perfeita para definir a cumplicidade que carrego aqui dentro. Envergonhei-me, enfim, pelo sutil desdém que foi soprado. No entanto, como a perseverança é senhora em mim, não pude deixar para trás os devaneios.

O amor não dá certo em seu complementar. Em quase todos os casos, torna-se patológico. É uma grande heresia acreditar que os opostos vivem felizes para sempre. As extremidades são grandes estátuas, quando a Sincronicidade brinca com seus caminhos. O avesso, pelo contrário, é feito da mesma estampa.

Amar alguém é avesso de mim. Um dos dois precisa carregar uma felicidade insuportável dentro de si, que transborda e nos afoga com ela. Eu, todavia, sou das lágrimas. Tenho apreço por águas mais salgadas. Sou náufraga de um périplo menos colorido. Prefiro quando não dá pé.

O meu amor não poderia estar nos rios ou cachoeiras. Preciso dele perto, a tecer enormes castelos de areia. Sempre na praia, agasalhado por sonhos primaveris. Um amor que invente personagens com plumas e que odeie a morbidez fria. Eu sou toda voragem. Acredito piamente na lucidez das sombras.

Prefiro as madrugadas. Meu avesso necessita ser súdito do Dia. Só que, entre o céu e o mar, somos cúmplices. Desertamos as grandes fortunas. Abdicamos os feudos. Imensos desfiladeiros abrem-se para mim, a cada noite em que ele me deixa seu endereço.

Queremos muito espaço para divagar sobre cavalos alados. Por isso convidamos alguns peixes. Eles embarcam nossas sintonias pelos mares. Uma elite de entidades foi convocada para levar nossos recados. É engraçado isso – só o avesso tem telepatia.

Poderia passar horas infindas justificando meu ponto de vista. Mas aprendi com meu amor a guardar. Não sublimar ou neglicenciar. É simplesmente arcano.

Silencio nossos segredos. Contudo, maravilhada com a ideia de avesso. Esse amor, outro lado, trouxe a urgência dos versos de volta para mim. Como é linda a simplicidade do tecido! Porque eu era sonâmbula antes dele. Reverberava sonos que não recolhiam.

A voz de Ceumar estava, por fim, errada. As minhas fantasias estavam com as costuras expostas. (em algum momento de 2008)

3 Comentários

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3 Respostas para “Avessos

  1. Bruna

    Oi Mari

    Sou amiga da Natalia, nos conhecemos em Lisboa.
    Amei o seu blog!!

    bjs x

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  2. ceumar

    mari, que bom que a música é sua, assim…adorei!
    beijos de amsterdam

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  3. Anônimo

    Mariana, que privilégio ..Seu texto me emociona.Beijinhos Cris

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