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No abismo de uma alegria sem manhã

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O comboio apitava dentro de mim, às sete. Eram cinquenta horas acordado, sem drogas. A embriaguez me vinha da bagaceira, da ginja, das três garrafas de vinho que havíamos bebido, no sótão, uma última vez.

Do alto da Romaria parece que a vida custa menos ao pensamento. Nos telhados encarnados, crestados pelo amarelecer primeiro, não havia silêncio que duvidaria da nossa comunhão. Eu, perderia o bilhete e a dignidade, feliz de testemunhar aquela aurora ao teu lado, amada.

Mas tu te despedias de mim. Alerta. Parece que o relógio sempre habitou teus olhos, mausoléus de eternidade. “Vais perder a viagem ao Porto, se continuares aqui comigo. ” E eu dizia: “Queres que não me perca, agora? ”

Quase cai, equilibrando-me em dúvidas e descaminhos. O teu perfume escancarava minhas escolhas, errôneas. A vida atracava no Tejo, fumegando em navios cargueiros. Um anjo, inaudito, assobiava estrelas. A tua dor me era vacilante. Ou era minha a vaidade que sussurrava, estúpida, adivinhando a cobardia.

Bêbedo, apanhei a mala, sem cadeados nem senhas, à espera do impedimento. Tu me lembraste do agasalho e da t-shirt que estavam na cozinha. Eu os apanhei, ainda envoltos na tua face, dividida. De um lado me mostravas a covinha, cúmplice. À sombra, do lado direito – aquele que a miopia te castiga mais – desdenhavas os trilhos. Será que nenhum rosto vibra em doçura, quando o caminhar atropela os lábios?

As lágrimas me pouparam, enquanto o comboio arrepiava-me os cabelos, às sete. Eram cinquenta horas acordado. O coração, exagerado, precipitava-se em farpas e lamentos. O vento, implacável, coordenava as esquinas de Santa Apolónia. Vivalma impedir-me-ia de regressar à casa.

Em Alfama, as gaivotas desenhavam nuvens. O lume jazia em nossa casa. Nenhum vizinho sabia nada de ti. As janelas, cerradas, obrigavam-me a esmagar o capacho, com aqueles dizeres esdrúxulos de amantes hibernados.

Tu, já longe, saberias do meu retorno, infame? Ah, só a literatura para suprir essa ausência de séculos que me imprimiste!

A solidão, todavia, invadiu meu terno, ao tocar a campainha. Perscrutou os bolsos, à procura do teu nome. Verificou minhas mãos, cobertas em epifanias, e tinta. Eu achava que o amor, valente, suportaria a cronologia. Mas plenitudes carregam o fardo do abandono. Não há cais que resista ao lenço branco.

O abismo, hoje, impede-me de enxergar as manhãs.

*Foto: Rik de Jager

 

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Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

Alfama
V
Há quanto tempo, Portugal, há quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.
Sonho, histérico oculto, um vão recanto…
O rio Furness, que é o que aqui banha,
Só ironicamente me acompanha,
Que estou parado e ele correndo tanto …
Tanto? Sim, tanto relativamente…
Arre, acabemos com as distinções,
As subtilezas, o interstício, o entre,
A metafísica das sensações —
Acabemos com isto e tudo mais …
Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!
Álvaro de Campos

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Instruções para matar um fantasma

Instruções para dar corda no relógio

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Julio Cortázar

“Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.”

Instruções para matar um fantasma

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O primeiro e imprescindível questionamento, quando se quer assassinar um fantasma, é certificar-se de que se deseja a nulidade verdadeira. A perda de alguns espectros pode deixá-lo vulnerável à eterna melancolia.

Imagine, se possível, as noites insones destituídas de sua presença. Reveja a si mesmo em solidão absoluta, mais inaudível que profundezas oceânicas, em escuridão de lua cheia. Fantasmas são, via de regra, ótimas companhias oníricas, devoradores de madrugadas.

Como os silêncios são penitências da maturidade, escolha-se adulto ao tomar uma decisão tão rigorosa como essa. Fuja dos charlatães que prometam o exorcismo. Nenhum corpo humano é capaz de apagar uma estrada.

Siga, passo a passo, os rituais de luto, que flutuam entre a negação e o sublime. Hospede-se em suntuosas criações, asilos para a cicatrização e desespero. Tolere a abstinência ontológica, compreendendo que, às vezes, ele psicografará por seus dedos – umas belas palavras – como gostos escondidos de infância.

Embora os relatos até hoje tenham sido promissores, pessoas ainda me confessam, à surdina: “passada a febre e a ira, é provável que você perceba: o fantasma sempre esteve ali, gestando no seu passado, acontecendo no seu agora e hibernando no infinito”.

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Em nanquim

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A mala pronta, com antecedência milenar, queria ser aberta, precipitando-se ao destino. Meus olhos, encarnados, tentavam expulsar a frustração de uma semana perdida. E a ida ao aeroporto foi tortuosa. Parecia-me que me seria impossível recolher-me novamente à minha alma, depois de acontecimentos tão doloridos, tão ínfimos e miseráveis. O coração não estava à espera de surpreender-se, naquele fim de semana em Itapuã.

E quem foi que viveu um amor em cronograma? Quem escolheu, em verso, data e hora, o instante de contemplação? Qual ser humano desvelou a própria morada, a priori de algum pertencimento?

“A tinta de escrever, por suas forças de alquímica tintura, por sua vida colorante, pode fazer um universo, se apenas encontrar seu sonhador.” – disse, sabiamente Bachelard, em devaneios de matéria. Alguns lugares são feitos para nos dar abrigo. Ficam calmos, suspensos no vazio, até a chegada do intruso que lhes ocupará.

Para mim, o pouso de três meros dias na casa do Vinícius, na Bahia, foi dessa maneira. Como se aquele casulo já tivesse habitado meus poros há milênios do saber. Todo poema é ideia que viaja pelo sangue à frente das sinapses.

Mais tarde, percebi que a casa em Itapuã refletia os mesmos sentimentos amorosos que nutri por Lisboa e pelo Recife. Não era a primeira vez que me apaixonava daquela forma, pelas pessoas, pelos olhares demorados, pelos pensamentos entrelaçados ao nascer do sol.

Talvez seja assim que a vida se apresente em sua forma mais pura. O delírio encharca a realidade, e podemos beber alguns goles de nossa essência. Inteiramente desprovidos de máscaras, vestes ou distinções burocráticas. Na esquina bonita onde as flores outonais da prosa e da poesia se misturam, derramadas em sinfonia.

Apenas no átomo interestelar está a vida. Seja na vigília do acaso, em Kundera, na meditação das pedras, em Caeiro, no balão que Cony não soltou. Ou simplesmente na sapiência de Vinícius, que pediu perdão ao que amou de repente, embora fosse uma velha canção, ressonando em seus ouvidos.

Nas imagens depuradas dos poetas percebi a necessidade de estar atenta, pois não se pode abandonar o segundo à revelia de uma era perdida.  Lá se encontram a casa natal, a cabana mais pueril, a misteriosa clareira em meio à floresta. A caverna mais íntima crava suas inscrições rupestres em nós, antes.

Certas vezes, quando a sobriedade impera há muito, nascem utopias felizes, para aniquilar a melancólica lucidez. E os lugares que passamos a amar nos levam à infância roubada, esquecida nos mapas indecifráveis de nós mesmos.

Na madrugada triste, insone, cálida, venho a me perder nessas lembranças. De Lisboa, do Recife, da Bahia. Reinventar a minha ausência, imaginada. Sentir saudade de ter sido feliz. E de ter ficado absolutamente perplexa, nas cores que o dia enalteceu, enquanto a ficção escrevia – em nanquim – as minhas águas.

Itapuã

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E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

Imagem

Foto de Bob Ferraz, amigo brasileiro que já possui seu heterônimo lisboeta na alma.

Álvaro de Campos – Fernando Pessoa

Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem,
Tínhamos estado dezoito horas juntos.
A conversa agradável,
A fraternidade da viagem,
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas…
Toda despedida é uma morte…
Sim, toda despedida é uma morte.
Nós, o comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem.
Tudo me comove, porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem…

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

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Lágrimas na Literatura

“A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho”. Bartolomeu Campos de Queirós

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janeiro 16, 2012 · 4:58 pm

Despedida

RUBEM BRAGA

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

Foto de Marcela Lalim: Lisboa ao amanhecer

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Por que há poesia em mim…

Notícias da Ilha

Findo o espanto
Passado o entorpecimento
Trazido pelos calmantes
Doces analgésicos da alma
Resta-me a perplexidade.

Quando deixarei de me surpreender
Com as lutas travadas
Entre a vida e a morte?
Mas a vida, meu irmão,
Vence sempre
Mesmo quando a morte
Rouba-nos o corpo.

Descansa
Ainda é cedo para despertar.
Enquanto dormes
Teu sono invadido pela eternidade
Eu te velo
Como velei nosso pai.
Entoarei cantigas de ninar
Para afugentar os pesadelos e as sombras.

Tua presença ainda está dispersa pela ilha.
Solta pelas esquinas, ruas, bares.
Vejo-te, às vezes,
Acompanhando teu cachorro
nos passeios de fim de tarde.
Ouvi tua voz rouca
No vento sul impiedoso
Que varreu a cidade
No dia da tua morte
E te reconheço nas bandeiras rubro negras
Que vestiram o Maracanã
Após o teu enterro.

Sei que estás presente
Em tudo
O que chamamos vida.
Nas tuas netas que nascerão
Nas histórias que contam a teu respeito
E nos segredos que guardamos.
A vida não se gasta, meu querido irmão.
O que se perdem são as ilusões, os apegos
Para podermos partir mais leves.

Ah, quando seremos educados pra viver
Em vez de perdermos tanto tempo
Com conhecimentos inúteis.
Faço de conta que estamos viajando
Por países diversos e que, em breve,
Trocaremos cartões postais.

Quando despertares, não te assustes
A vida continua sempre.
Se sentires medo, reza
Como aprendeste a fazer
Nos últimos tempos
E verás que luzes coloridas romperão
Os espaços a te abraçar.
Se te sentires só, visita-me
Nunca temi os espíritos,
E serás sempre bem vindo.

Miriam Portela

 

Vivi séculos de fome e cilícios

 

Vivi séculos de fome e cilícios.

Vivi vidas de fausto e opulência.

Vivi a fartura, o êxtase, o sagrado.

Através de ti, todas as primaveras se

anteciparam, todas as colheitas,

os frutos acres e maduros; as neblinas,

os serenos, as madrugadas se ofertaram.

Em ti, vivi o momento cósmico da expansão

dos corpos sólidos.

Ensinaste-me o fogo e ele me consumiu…

Ensinaste-me a saliva e ela me saciou…

Ensinaste-me os suores e eles invadiram os

poros de prazer.

Tu me mostraste

como se mata a sede na concha das mãos e

teceste em minha pele, desvios de rotas.

Tu arrancaste de meu rosto as máscaras

ardidas de dor e me devolveste um rosto sem

rictus.

Tu me revelaste a simplicidade das formas e eu

redescobri a inutilidade de todos os meus

adereços.

Miriam Portela – Nos Mares de Vênus

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Esta angústia que trago há séculos em mim transbordou da vasilha…

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto. Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.

 
Estou assim… Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

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Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim…

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste!  Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!  …

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

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Toda saudade é uma espécie de velhice…

“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

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Não se sonha uma vida fora…

E porque estou, a cada dia, ajeitando o meu caminho para encostar no teu…

Watching the wheels – John Lennon

People say I’m crazy doing what I’m doing
Well they give me all kinds of warnings to save me from ruin
When I say that I’m o.k. well they look at me kind of strange
Surely you’re not happy now you no longer play the game

People say I’m lazy dreaming my life away
Well they give me all kinds of advice designed to enlighten me
When I tell them that I’m doing fine watching shadows on the wall
Don’t you miss the big time boy you’re no longer on the ball

I’m just sitting here watching the wheels go round and round
I really love to watch them roll
No longer riding on the merry-go-round
I just had to let it go

Ah, people asking questions lost in confusion
Well I tell them there’s no problem, only solutions
Well they shake their heads and they look at me as if I’ve lost my mind
I tell them there’s no hurry
I’m just sitting here doing time

I’m just sitting here watching the wheels go round and round
I really love to watch them roll
No longer riding on the merry-go-round
I just had to let it go
I just had to let it go
I just had to let it go

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25 de abril – A Revolução dos Cravos

Tanto Mar

Chico Buarque

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

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Grandes são os desertos…

Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.

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Looking for flying saucers in the sky…

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A calhar…

Esse poema é o meu predileto de Pessoa. Conheço há anos e o recito como se estivesse declamando a minha própria alma. Tenho imensos ciúmes dele. Por muito tempo, quis aprisioná-lo a mim. Um segredo entre mim e o mestre. Pouquíssimos seres humanos o descobriram. Mesmo os portugueses mais apaixonados se surpreenderam quando o apresentei. Hoje, eu o deixo ir embora porque o amo. Na íntegra. Milimetricamente recuperado. Com todas as cousas em seus devidos lugares. 


Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto…
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos?) – Novas poesias inéditas

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O colecionador de saudades*

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Eu gostava mesmo de escrever em terceira pessoa. No entanto, tentei e foi um bocado frustrante. Acho que ainda trago a própria vida embutida no coração do pensamento. E isso passará, com o rebentar dos anos.

Chamava-me Manuel Leite de Barros. Tenho vinte e dois anos e decidi dar um fim a mim mesmo. E não, não cometerei suicídio. A morte não tocará meu corpo, embora eu vá matar a mim durante essas páginas. Porque estou farto de ser eu.

Desde miúdo sinto-me um estranho em casa. É tradição em minha família colecionar. Meu pai possui uma coleção de bulas de remédios. Obviamente, trata-se de um inveterado hipocondríaco. Ele cataloga todas as descrições medicamentosas em ordem alfabética, dividindo-as em doenças. E orgulha-se imenso de ter mais de dois mil papéis ordenados em uma pasta castanha.

Minha mãe desde sempre foi apaixonada por corujas. Para ela, mais que símbolo do saber, as corujas são as grandes amantes da noite. “Com certeza a sabedoria acontece na escuridão”, diz-me repetidas vezes. Hoje, sua coleção já transborda doze estantes e ultrapassa quinhentas réplicas de todos os formatos, regiões e cores.

Até mesmo uma prima que mora no Brasil é viciada em coleções. Ela armazena todas as palavras bonitas que lê nos jornais. Por dia são escritas em seu caderno cerca de cento e doze novas aquisições.

Duvidei de meus laços sanguíneos até amar pela única vez. Uma profética festa de Santo Antônio, no dia 12 de junho de 2003. Antes disso, não havia colecionado absolutamente nada.

Eu me encontrava ao pé do Beco do Vigário, em Alfama. A lua estava cheia e a embriaguez já começava a me cobrir de sorrisos tolos. Foi ali que avistei Carminho.

Maria do Carmo Pereira tinha acabado de completar seus dezenove anos. Era irmã de um conhecido meu. Eu havia sido apresentado a ela quando éramos crianças. Passamos dez anos sem nos cruzar – mesmo sendo Lisboa uma cidade minúscula.

O velho clichê do amor instantâneo fez de mim sua vítima. Passamos a madrugada toda a conversar. Acolhidos pelo miradouro secreto, atrás da igreja de Santo Estevão. Só nos permitimos partir quando a manhã nasceu quente e o Tejo inundava-se em raios de ilusória pureza.

Foi assim que comecei a colecionar. A colecionar Carminho. Seus gestos, sua timidez. Cada partícula de sua alma. Apreendi sessenta e três olhares, cento e quarenta e sete sorrisos, vinte e seis jeitos dela prender os cabelos e duzentos e oito beijos. Superando toda e qualquer dicotomia sujeito-objeto, eu era capaz de colar minha visão ao seu rosto. Um ser indissolúvel, apartado em dois corpos.

Nada necessitava de catálogo. Ficava tudo cravado em minha memória. Nas horas em que não a via, brincava de contar minha suntuosa coleção. Ao final, sentia-me verdadeiramente um Leite de Barros.

Contudo, nossa relação teve um prematuro fim. No dia 14 de julho de 2004, ao sair apressada da Estação Cais do Sodré para me encontrar, Carminho foi atropelada por um elétrico. Seus ossos frágeis não resistiram às feridas e, algum tempo depois, ela faleceu no hospital.

Eu não me conformei com a perda. E, para não deixá-la morrer em mim, passei a colecionar saudades. Todos os dias, religiosamente, dava corda nos seus beijos, nos seus olhares, nos seus cabelos.

Algumas semanas após o seu enterro, decidi deixar Lisboa e a minha família. “Porque me sabia bem sentir saudades deles todos”. O afastamento seria imprescindível para aumentar minha coleção.

Pedi transferência do meu estágio para Viseu, onde meus pais tinham uma propriedade vazia. Por longos seis meses, pude beber da minha nostalgia. Enxertava a pele em fotográficos ensaios. Alimentava a melancolia com curtas metragens daqueles que eu amava. E todos os sofrimentos eram apaziguados.    

Cometi, todavia, um erro fatal. Posicionei Chronos em cumplicidade. E ele é um assassino silencioso. Porque a saudade – ao contrário do que dizem os fadistas – é inimiga das horas. É brutalmente borrada no tempo.

Na manhã de hoje, fui incapaz de reviver um dos beijos de Carminho. Espremi os olhos e não o achei. Rebobinei-me todo e havia desaparecido. A sofreguidão em resgatá-lo deixou-me ainda mais confuso. Eu me traí, sepultando minha doce reminiscência. Agora, estou à deriva. Só enxergo nebulosas. Destroços. Lábios partidos ao meio.

Hoje fui deitado fora. Como me dói, meu Deus! Como me dói essa saudade que sinto das minhas saudades colecionadas! Antagônico, o esquecimento enjaula-me à lembrança. Ninguém ensinou a mim que as coleções devem ficar cobertas de pó. Encostadas em prateleiras. Presas em vidros de éter.

O amor não é encarcerado nem posto em conserva. Mesmo o maior dos amores pode nublar. Paulatinamente, por inércia, cautela em demasia ou escolha, todo amor é passível de fenecer. E a saudade, pela sutil vingança do tempo, não é colecionável.

Digo adeus a mim neste momento porque vou me mudar. Levo meu espírito para abrigar outra identidade. Crio um semi heterônimo. Sem passado algum. Colecionarei saudades de mim mesmo, enquanto me for permitido. Avisto virgens futuros para o meu efêmero ser. Se, por ironia, apagar também essa saudade, não há problema. Eu já não me serei.

* Ps: tive a honra de ter sido publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais, com este conto.

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