Da Transcendência do Real

 

 

“Todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema” – Gaston Bachelard

O caixão passa despercebido pela multidão, inerte pelas imagens paralisantes de uma televisão. Uma criança – pois a infância é menos distraída – pergunta aos pais: quem é o morto? O pai responde, sem tirar os olhos entorpecidos: “É a literatura, meu filho. Ela não tem mais lugar nesse mundo”.

Já nos anunciava Ray Douglas Bradbury, escritor da história que deu origem ao belíssimo filme de François Truffait “Fahrenheit 451” (1966) que a televisão nos deixaria órfãos do prazer literário. Embriagados pelo imediatismo dos clipes, em poucos anos não só deixaríamos de ler, como passaríamos a repreender aqueles que quisessem passar horas solitárias em companhia de um livro.

As palavras podem soar extremistas, ou mesmo absurdas. No entanto, é inegável a metáfora. Até mesmo nossas refeições são apimentadas pelo televisor. Dificilmente uma pessoa passa um dia sem ligar o aparelho. Postas de lado, as pequeninas folhas tornam-se cada vez mais amareladas, esquecidas na cabeceira. O livro se tornou uma espécie de adorno, mais um item indispensável na decoração de uma morada.

E eis que surge um novo Titã, no duelo pela comunicação: a Internet. Os media electrónicos, presentes há muito pouco em nossa sociedade, vieram incomodar o sono tranqüilo do Gigante Televisivo. A rapidez das informações prestadas, a velocidade da divulgação, a criação de comunidades virtuais têm povoado o imaginário colectivo e dado novos rumos ao modo de transmitirmos mensagens.

Como não devemos discutir o que é inevitavelmente obsoleto – os perigos e fantasmas que rondam as redes virtuais – há de se pôr em questão as novas formas que a Cultura pode vivenciar, a partir da chegada dos meios não reais, não concretos de nos comunicarmos.

Hermano Vianna, antropólogo brasileiro especialista em Cultura, criou em fevereiro deste ano um site com o objetivo de descentralizar o conhecimento e divulgar as manifestações culturais dos estados do país. O site (www.overmundo.com.br) tem seu nome inspirado em um poema de Murilo Mendes:

“(…) Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante,

Que anda, voa, está em toda a parte

E não consegue pousar em ponto algum.

Observai sua armadura de penas

E ouvi seu grito eletrônico. (…)”

Nas palavras do próprio idealizador, dada em entrevista à Folha de São Paulo, um conceito fundamental para a actualidade surge – a generosidade intelectual:

“O que há de mais legal na internet foi produzido de forma coletiva com o objetivo de disponibilizar informação. Eu me sinto sempre em dívida, pois como eu já usei o trabalho de outras pessoas, que botaram informações e músicas de graça [na rede]! O Overmundo é uma forma de pagar um pouco dessa dívida. É cafona dizer, mas as pessoas estão dispostas a dedicar parte do seu tempo ao bem comum. É generosidade intelectual mesmo.”

Este fundamento torna-se a essência das intervenções universais electrónicas. Temos a obrigação de nos apoderar dessa disponibilidade. Navegar os sites de música para destruir as imposições das gravadoras. Gritar ao mundo quais são os artistas a quem queremos doar nosso reconhecimento. Viajar pelos blogs e compartilhar as solidões com nossos semelhantes. Viver intimidades a milhares de quilómetros. E assim, vislumbrar a possibilidade da Ressurreição Literária. A literatura não só é mais uma de nossas artes. É matéria pulsante da construção dos nossos pensamentos. Nas palavras do sociólogo polaco Zygmunt Bauman:

“Aprendi a considerar a sociologia uma daquelas numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam — após terem primeiramente processado e reinterpretado — a experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo do modo como essa experiência foi construída e pensada, e dessa maneira ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era “por direito” superior a outras narrativas, pois tinha de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição — assunto tanto da sociologia como das belles-lettres.”

O futuro, pois, pode brilhar novamente em nossas ideias. A revolução não palpável, a invasão do virtual no quotidiano pode ganhar formas mais bonitas e menos assombrosas. Temos a potência para utilizá-la em nosso benefício. O renascimento artístico deixa de ser latente. A cultura pode reinar, mais uma vez.  E especificamente a Literatura é uma necessidade nossa. Porque a realidade não existe, certamente. Nós a criamos todos os dias, ao lermos o universo com os olhares. Os escritores bem sabem disso. A eles é permitido transcender o irreal acesso ao conhecimento absoluto. A frase de Bachelard, posta no início deste texto, é enfim revelada. 

 

 

 

 

 

1 comentário

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Uma resposta para “Da Transcendência do Real

  1. Anônimo

    que sorriso lindo!

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