posfácio

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ANOTAÇÕES SOBRE UMA LÍRICA INTENSA E FILOSOFAL

 

Silvana Guimarães

 

Primeira

 

Contos ou crônicas: prefiro chamar de histórias o conjunto de textos vertiginosos apresentados neste livro de Mariana Portela. Pequenas grandes histórias que contêm os elementos essenciais da narrativa: tempo, espaço, personagens e conflitos bem articulados. Embora divididas em seções, seu conteúdo demonstra certa predominância do assunto amor, especialmente, em seus encontros e desencontros [todo livro, de certo modo, é uma história de amor]: E o amor era uma crase. Construídas com um vocabulário rico e variado, em que algumas palavras parecem cheias de frescor de tão pouco usadas: A sabedoria é crudívora. Deliberada ou aparentemente confessionais: Com os olhos inchados de tamanha realidade, sinto-me pequena, frente àquilo que nós não vivemos. De todas as dores, essa, mais clichê, é a que mais dilacera uma alma bipolar: o lado que sonha. É assim que Mariana consegue revirar naufrágios [salvar afogados].

 

 

Segunda

 

Entre textos sombrios e ensolarados, entre o sentido e a razão, a autora revela-se explicitamente ou de forma implícita, propõe e desvenda enigmas. Em diálogos com interlocutores especiais [Fernando Pessoa, o mais fiel deles], onde se percebe um leve sotaque português [Mariana vive em Lisboa, lá “Há um rio, digno de aorta”], ela devasta os tormentos e dilemas cotidianos de todo escritor e desabafa amarguras, em um claro exercício de fôlego e solidão: “O que a noite me ensinou sobre todas as coisas, pode ser traduzido na meditação desesperada dos silêncios. Esses instantes de exílio poético, em que as clausuras do amanhã não se sobrepõem às eternidades imaginadas”. Ao mesmo tempo, convoca o leitor a reviver passados, iluminar memórias, seguir ao seu lado, decifrando e arrebatando seus códigos linguísticos: “E reitero, enfim: nunca se esqueçam da minha devoção às palavras. Pois aprendi que não se morre de amor; morre-se de cachaça. Quando ideias se tornam interiores, esqueço-as como moedas. Um dia, reencontro-me com elas, em lugares inusitados. A mim, sobram-me os caminhos, que perco tanto quanto canetas. Só que as canetas me fazem mais falta do que as estradas. As canetas são as avós do futuro”. É assim que Mariana usa a literatura como arma de sequestro.

 

 

Terceira

 

Do realismo puro e simples, textos apinhados de ricas imagens poéticas transitam pelo realismo fantástico e pela fantasia: “Não há memória que atinja, em igual beleza, uma superfície perfumada, com firma reconhecida. E isso constitui o maior fardo e o maior dom que alguém pode carregar. Todas as verdades só existem antigamente, quando a coragem legitimou o delírio de uma assinatura”. É dela a previsão certeira: “Quando a arte nos atinge, não adianta mais tentar arrancar os brancos fios, enluarados. Há de se aceitar a ancestralidade libertária, como as árvores que assumem ser berço dos passarinhos”. Nesses caminhos — escancarados ou secretos — a sua arte, por meio de tantas minúcias, revela-nos [e provoca-nos] reflexões, surpresas, perplexidades, angústias: “Pincelamos as mesmas cores, mesmo quando possuímos mais tintas”. Como um sol que incendeia o horizonte e nos concede o privilégio de ler muito mais do que está escrito. Ou responder às perguntas sem respostas de alguém que acredita — e nos convence de — que a vida é ficção. “Aos deuses, aplausos. Fui abençoada com o fardo incurável das palavras”. É assim que Mariana faz mágica.

 

 

Belo Horizonte, 25 de janeiro de 2018.

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Arquivado em Outros poetas, Poesia

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