Estátuas

Luis Fernando Verissimo

O ESTADÃO – 20/11/11

“Há uma estátua do Carlos Drummond de Andrade sentada num banco da praia de Copacabana, uma estátua do Fernando Pessoa sentada em frente ao café A Brasileira, em Lisboa, uma estátua do Mario Quintana sentada num banco da Praça da Alfândega de Porto Alegre. Salvo um cataclismo inimaginável, as três estatuas jamais se encontrarão. Mas, e se se encontrassem?

– Uma estátua é um equivoco em bronze – diria o Mario Quintana, para começar a conversa.

– Do que nos adianta sermos eternos, mas imóveis? – diria Drummond.

Pessoa faria “sim” com a cabeça, se pudesse mexê-la. E acrescentaria:

– Pior é ser este corpo duro sentado num lugar duro. Eu trocaria a eternidade por uma almofada.

– Pior são as câimbras – diria Drummond.

– Pior são os passarinhos – diria Quintana.

– Fizeram estátuas justamente do que menos interessa em nós: nossos corpos mortais.

– Justamente do nosso exterior. Do que escondia a poesia.

– Do que muitas vezes atrapalhava a poesia.

– Espera lá, espera lá (Drummond) Minha poesia também vinha do corpo. Minha cara de padre era um disfarce para a sensualidade. Minha poesia dependia do corpo e dos seus sentidos. E o sentido que mais me faz falta, aqui em bronze, é o do tato. Eu daria a eternidade para ter de volta a sensação na ponta dos meus dedos.

Pessoa:

– O corpo nunca ajudou minha poesia. Eu e meus heterônimos habitávamos o mesmo corpo, com a sua cara de professor de geografia, mas não nos envolvíamos com ele. Nossa poesia era à revelia dele. E fizeram a estátua do professor de geografia.

Quintana:

– Pra mim, o corpo não era nem inspiração nem receptáculo. Acho que já era a minha estátua, esperando para se livrar de mim.

– Pessoa – diria Drummond –, estamos há meia hora com você nesta mesa do Chiado, e você não nos ofereceu nem um cafezinho.

– Não posso – responderia Pessoa. – Não consigo chamar o garçom. Não consigo me mexer. Muito menos estalar os dedos.

– Nós também não…

– Não posso reagir quando sentam à minha volta para serem fotografados, ou retribuir quando me abraçam, ou espantar as crianças que me chutam, ou protestar quando um turista diz “Olha o Eça de Queiroz”…

– Em Copacabana é pior – diria Drummond. – Fico de costas para a praia, só ouvindo o ruído do mar e o tintilar das mulheres, sem poder me virar…

– Pior, pior mesmo – diria Quintana – é estar cheio de poemas ainda não escritos e não poder escrevê-los, nem em cima da perna.

Os três concordam: o pior é serem poetas eternos, monumentos de bronze à prova das agressões do tempo, fora poluição e vandalismo – e não poderem escrever nem sobre isto.

As estátuas de poetas são a sucata da poesia.

E ficariam os três, desolados e em silêncio, até um turista apontá-los para a mulher e dizer.

– O do meio eu não sei, mas os outros dois são o Carlos Gardel e o José Saramago.”

4 Comentários

Arquivado em Crônica, Outros poetas

4 Respostas para “Estátuas

    • penha

      Gostei bastante ,prezadissimo Luis Verissimo, portanto gostaria que relatasse também as estátuas que existem em Fortaleza (ce) da nossa querida e talentosa escritora RACHEL de QUEIROZ… Patativa do ASSARÉ….OK!!!!!!!!!!!!!!!

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  1. Gostei deste texto. Me inspirou a ler mais este blog.
    Virei fã seguidora!

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  2. Anônimo

    Texto muito criativo! Imagino os três mestres da escrita sentindo-se presos à esfera terrestre, sem conseguir tomar as decisões deles que foram tão criativos, ativos e inteligentes…

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