Arquivo do mês: dezembro 2009

Promessa de Ano Novo

O Natal de Maria Clara, naquele ano, havia sido mais triste. Desde que conhecera o Teatro Municipal, não encontrara muita beleza nas luzes estapafúrdias que engoliam a cidade e as pessoas.

O Réveillon também era uma estranha recordação. Seus tios, depois de uma certa altura, pareciam mais crianças que ela mesma – e isto fora muito divertido. Só que, no dia seguinte, passaram a se queixar de dores de cabeça. Cobriam seus olhos com óculos escuros. Fugiam impunes do sol, em plena praia. Como uma noite de infância dói tanto?

Clarinha refletiu muito tempo sobre esse assunto. E, como necessitava de uma resolução para todos os problemas, perdoou os parentes. Realmente ser criança é ter muitos planetas à disposição. Isso deve machucar as cabeças que trabalham todos os dias.

O verdadeiro significado do verão, para ela, no fundo, no fundo, era o mar. Levantar bem cedinho – o frio da noite ainda não fora dormir – e observar os raios amarelos que pintavam as ondas com precisa timidez.

Com o mar, Maria Clara passava horas de sereia. Coordenava aventuras infinitas, que só seriam resolvidas no misterioso amanhã. Aumentar o tamanho das histórias prolonga os verões, pensava com orgulho de si mesma. E era o almoço o invencível vilão. Porque depois dele o mar seria saudade de imaginar. Ah, a obrigação horrorosa de digerir as manhãs. 

A menina descobrira uma forma genial de acelerar as duas horas que a separavam do mar. E como sentia-se esperta de ter elaborado aquela saída! Eram horas de leitura, de concentrar-se totalmente nos livros. Até sentir a vertigem gostosa. Até grudar-se nas páginas e quase não ler mais: a palavra já estava presa aos olhos.

Nos fins de tarde, quando o mar era muito gelado e o coração estava nublado de lembrança, vinham as peripécias contadas pelos tios. Narrativas de piratas e navegadores de verdade. Mas tudo, tudo sempre encharcado de oceanos protagonistas.

E foi numa tarde de janeiro que a tia, com ironia ferina, contou para ela sobre a descoberta do Brasil. Com desdém, riu-se dos índios. Primitivos. Incapazes de enxergar as caravelas. Sentiram apenas uma estranheza no horizonte!

Para a menina, nada era mais óbvio. Como poderiam ter avistado? A imaginação ainda não tinha sonhado com navios. Exatamente igual ao que ocorria com seus personagens de mar. O hoje é fundamental para o nascimento das coisas. Ontem, por exemplo, não havia criado uma baleia que a salvasse dos dentes terríveis do tubarão. Se a baleia fosse antecipada, não existiria a taquicardia da batalha.

Enquanto os tios amarfanhavam os heroicos índios, Clarinha ia deixando aquelas falas inúteis serem anonimizadas. Fez para si uma promessa de Ano Novo: passaria o resto daquele verão – ou se fosse preciso, o ano inteiro – à procura de índios. Índios que, como ela, não traduziriam em caravelas o indizível sentido das marés.

 

1 comentário

Arquivado em Textos meus

Arte Poética – Jorge Luis Borges

Mirar el río hecho de tiempo y agua

y recordar que el tiempo es otro río,

saber que nos perdemos como el río

y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño

que sueña no soñar y que la muerte

que teme nuestra carne es esa muerte

de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo

de los días del hombre y de sus años,

convertir el ultraje de los años

en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso

un triste oro, tal es la poesía

que es inmortal y pobre. La poesía

vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara

nos mira desde el fondo de un espejo;

el arte debe ser como ese espejo

que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,

lloró de amor al divisar su Ítaca

verde y humilde. El arte es esa Ítaca

de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable

que pasa y queda y es el cristal de un mismo

Heráclito inconstante, que es el mismo

y es otro, como el río interminable.

1 comentário

Arquivado em Outros poetas

Hoje, num futuro qualquer*

Fernando Portela

Eu ainda gritei “Maria, desgraçada, não vai abrir a porta?”. Mas a campainha tocou de novo, após algum tempo. Um toque leve, de gente educada. Maria deveria ter saído cedinho. Pra namorar, com certeza. Maria ia acabar engravidando, aos dezesseis anos, e a gente seria obrigado a devolvê-la à família no interior.

“Já vai! Espere um pouco!”, berrei lá de dentro. Estava nu, preparando-me para o banho que tomava, pontualmente, às oito da manhã. Meus dois filhos àquela hora já haviam iniciado o trabalho na oficina mecânica, no prédio vizinho. Eu, com meus direitos de coroa, sempre chegava atrasado. E a vontade era a de atrasar mais, a cada dia. Também, cinquenta e três no costado… Trabalhando desde os doze…

Quem seria, àquela hora? Vesti a camiseta que estava jogada sobre o cesto. Meio fedida. Dane-se. A inútil da Maria ainda não recolhera a roupa suja. E se um dos meus rapazes transasse com ela? Não, não, eles tinham juízo, e arrumavam mulher quando e onde queriam. Igual ao pai.

Devo ter aberto a porta meio no tranco. A menina, uns dez anos, sobressaltou-se. Que gracinha! Simpatizei com ela imediatamente. Rostinho redondo, cabelo curto, lourinha. Covinha só de um lado. Usava uma roupa meio estranha, larga, parecida com uma jardineira. Um tecido… amarrotado, como se fosse papel. Já não havia visto aquela criança antes?

“Desculpe, minha filha, se assustei você…”

“Não… não…”, ela fez, com um sorriso lindo. Olhou para mim com muita curiosidade, como se procurasse alguma coisa no meu rosto.

“Então diga, minha filha, que você deseja? Já sei… O carro do seu pai ou da sua mãe quebrou.”

“Não…”, ela balbuciou novamente, e era extremamente gracioso o jeito de articular a palavra. “Nada disso, eu só vim te ver, vovô.”

E logo depois consertou:

“Eu não deveria ter vindo, mas vim. Desculpe. Sabe, amo você. Olhei pra você agora e amei você… ainda mais! Já amava antes.”

Eu sorri, meio forçado, até porque sentia que havia algum sentido naquela doidice. O rosto da menina me era familiar.

“Querida”, eu disse sorrindo, “deixe de brincadeira. Não sou avô, meus filhos têm vinte e dois e vinte e quatro anos, nem pensam em casar. Mas eu até gostaria mesmo de ter uma neta como você… assim… tão simpática”.

Uma pausa. Fui ficando nervoso. Quem resolvera tirar sarro da minha cara? E contratara uma menina inocente pra isso?

“Vô: não sou filha nem do Zezinho nem do Tião. Minha mãe é Inês, lá do Rio de Janeiro.”

Empalideci. Inês. Estava agora com a idade daquela menina na minha frente. Dez, onze anos. Duvidei todo esse tempo que Inês fosse minha filha. Sua mãe, Dora, tinha outros namorados. Mas ela sempre afirmara: “Mãe não se engana; Inês é sua!” Depois, magoada: “Sabe, se não vai assumir, o problema é seu! Deixe que eu dou conta…”

Fazia uns dois anos que eu não as via, Inês e a mãe. Ninguém sabia desse meu segredo. Nem os meus filhos. Só o padre, que não espalha pecado dos outros, e Rubens, meu amigo-irmão, meu confidente. Mas Rubens não iria fazer uma palhaçada dessas comigo. Até porque estava morrendo de cirrose hepática. A pele verde, o olho branco.

“Minha querida: você é muita novinha pra ser usada numa brincadeira de mau gosto. Quem mandou você aqui? Diga, por favor, o que é que você quer?”

Acho que vi lágrimas em formação nos olhos da menina.

“Vô… desculpe. Eu não devia ter vindo. Mas eu precisava ver o senhor. Minha mãe fala tanto no senhor. Ela é apaixonada…”

“Querida, querida, escute aqui: eu não sei como você sabe de Inês, das minhas histórias no Rio, acho que alguém está me gozando, mas, pense bem: Inês deve ter a sua idade… é um pouco mais velha, talvez. Inês só poderia ter uma filha do seu tamanho daqui a uns vinte anos…”

Parei de falar porque comecei a ver na menina uns traços de minha mãe, do meu filho Tião e até meus, como o jeito de olhar de lado, o sorriso meio tímido. De repente, ela saiu correndo. Sem olhar para trás. “Tchau, vô, depois… depois a gente…” Não entendi o final da frase. Corria em câmera lenta, leve, sobre a calçada arborizada, como se fosse voar, a minha neta.

* esse conto pertence ao livro que é, sem dúvida, o meu preferido: Memórias Embriagadas

2 Comentários

Arquivado em Outros poetas

O menino

Encontrei outro dia um menino que me fitou com cumplicidade secular. Tem a pele branca. Cabelos ralos, castanhos. A vulgaridade do azul não toca seu olhar. Porque muito pouco interfere a beleza improvável da sua íris.

 

O azul dos olhos do menino é rigorosamente secreto. Está todo envolto em silêncios. O azul dos olhos do menino são portas abertas para uma solidão em clausura. São aquários inabitados que ainda sonham com peixes. Brutalmente dócil.

 

O menino me contou da melancolia que o dilacera por não ter companhia nas manhãs frias da sua terra. A neve o faz desencontrado de quimeras.

 

Abandonado pelos pais – trabalhadores desavisados dos fantasmas da infância – o menino sonha com companhias imaginadas. E, ao se saber criador do seu universo, sofre. Um mero afago o faria doar aos órfãos toda sua capacidade de inventar.

 

Até o ouvinte menos atencioso seria petrificado pela amargura de seus dizeres: a gente tem vontade de entregar toda a alegria ao seu futuro passado.

 

O que o menino não sabe agora é que as feridas são depurações da nossa alma. Atrás das queimaduras há epidermes rosadas. Seu duro aprendizado fará dele um melhor pai. Ele terá a família sempre à mesa.

 

No cerne das suas lágrimas há uma liberdade, uma anárquica chance de construir o seu destino. Para além dos traumas irreversíveis existem horizontes de mar.

 

Eu, como não pude dizer nada disso ao menino, escrevo para elaborar a minha angústia de ter sido feliz. Com muito medo de que essa felicidade desesperadora me impeça de poder escolher meus trilhos também. Porque só a tristeza é senhora do mudar.

 

Senti, finalmente, a inveja pesada: não dos seus olhos azuis, mas da minha comiseração. Porque a cicatriz é a única pele que conta uma história. E são as histórias quem nos impedem de cair no esquecimento.

 

Enquanto isso, o menino espera a noite acabar para certificar-se de que não havia bicho papão. E, sem se dar conta, o menino estará condenado a amar a noite mais do que todas as mulheres de sua vida.

 

Eu queria dar-lhe, menino, saudades de balanço. Roubar lindas palavras como se roubam flores. Só que as flores são deveras sentimentais para acalentar seu espírito. Eu queria furtar sonhos de cantigas de ninar. Mas nós dois conjugamos a língua das fábulas.

 

Compreendo, por fim, o sentido último do nosso estranho reconhecimento. Você é uma narrativa que não pode morrer como as suas esperanças, ao final de cada tarde. E isso eu posso fazer. Escrever-te. 

1 comentário

Arquivado em Textos meus

Véspera

Enquanto as malas ainda estão abertas, o coração já embarcou.

Deixe um comentário

Arquivado em Textos meus

A sorte é pra quem pode

 Fernando Portela

“Ela agora é um vegetal.”

Foi assim que dona Larissa, de volta do hospital, definiu Toninha, sua própria filha, às vizinhas reunidas na sua casa. Havia um clima de velório, ali, e as crianças estavam muito confusas com aquela história. Dona Larissa ficou com vergonha de confessar que esquecera o nome da doença de Toninha e preferiu dizer que nem os médicos sabiam.

“Ela voltará a si?”

“Pode voltar, pode não voltar. Pode ficar assim por uma semana e morrer. Pode ficar assim para o resto da vida.”

Uma semana depois, quando Toninha retornou a casa, de ambulância e de maca, as crianças suspiraram: o “vegetal” era a mesma Toninha de sempre, meio criançona apesar dos vinte e dois anos, e que gostava de se vestir de bruxa para perseguir a molecada da rua. Era uma farra. Agora, como iria dormir sem hora para acordar, a brincadeira ficara adiada, sabe-se lá até quando. Aquele pessoal com menos de onze anos sentiu muito.

Mas nem se passaram cinco dias, quando o povo, ainda chocado, viu dona Larissa, sempre com um enorme lenço de choro no bolso, receber o caminhão da “Sorte é pra quem pode”, promoção das Lojas Sol. O veículo ocupava metade da rua, que era meio torta, com muitos problemas no calçamento e poucas árvores, e estacionara em frente à pequena casa.

“Dona Larissa! Dona Larissa!”, gritou um palhaço, acompanhado de uma câmara de televisão, “a senhora ganhou a troca de todos os seus móveis e aparelhos domésticos! A sorte é pra quem pode!”

Uma pequena multidão se acercou da casinha, e dona Larissa, cujo marido havia se engraçado por outra, e que vivia de produzir bolos e doces, já não conseguia controlar o choro e o riso, que agora vinham intercalados. As vizinhas, eufóricas, confluíram rapidamente. Ela, no centro das atenções, não largava o lenço grande, orientando a equipe de carregadores a acomodar os móveis novos, belíssimos, e a retirar os antigos, lamentáveis.

Na confusão, um dos carregadores lhe pediu para acordar a mocinha lá dentro, a fim de trocar a cama, e aí dona Larissa caiu num choro mais dramático, correu até Toninha, beijou-a muitas vezes no rosto.

“Ela não acorda mais, senhor. Come, faz necessidades, tudo, tudo, sem sair da cama. Mas, de vez em quando, chora. Eu fico preocupada: será que ela está vendo o que acontece aqui?”

O homem, muito impressionado, disse que seguramente não. Mas, com certeza, e até pra compensar sua situação, ela estaria desfrutando dos mais lindos sonhos que um ser humano poderia ter.

“O senhor acha mesmo?”

“Tenho certeza, dona. Conheci uma pessoa assim que, quando acordou, contou os sonhos que teve. Eram, assim, coisas impossíveis de descrever, de tão bonitas. Eu mesmo achei que valeria a pena dormir daquele jeito”, insistiu o homem, com um hálito de cerveja recente.

“Será?” Dona Larissa guardou o lenço grande, já imaginando uma forma de acomodar a filha na cama nova.

Dona Cléssia, da casa da frente, veio dar um abraço na amiga e lhe garantir que a sorte, de fato, não é pra quem pode, mas pra quem merece.

“Depois de Cristo, a pessoa que mais sofreu foi você, Larissa”, ela garantiu, acomodando no ombro a cabeça da amiga. “Você merece todos esses móveis lindos, e essa geladeira, você viu?, é enorme, de duas portas…”

“Vai ter de ficar na sala, porque na cozinha não cabe”, lamentou dona Larissa. “A televisão é muito grande também, mas entrou no quarto. Se eu usasse uma cama de casal, como antigamente, não daria.”

“Os móveis velhos vão ser um problema, não, minha amiga? O pessoal do caminhão vai levar?”

“Eles vão me indenizar, é um bom dinheiro, faz parte da promoção…”

“Meu Deus, mas que sortuda!” Dona Cléssia aproximou os lábios do ouvido de dona Larissa. “Será que é por causa da doentinha, essa sorte?”

“Não sei, não pensei nisso…”

O palhaço, que acabara de distribuir balas e balões coloridos às crianças que iam aparecendo, veio chamar “a dona da sorte” para dar uma grande entrevista, falando da felicidade que as Lojas Sol lhe haviam proporcionado.

“Não precisa falar da moça com problemas”, disse o palhaço. “Só coisa boa, coisa boa! E meta esse lenção no bolso!”

Ela falou, do jeito que lhe disseram, mas não foi possível demonstrar toda a alegria que eles queriam. A entrevista acabou suspensa porque dona Larissa percebera que uma pessoa estranha entrara na casa. Ela gritou, dando o alarme. Os carregadores ajudaram a tirar, lá de dentro, um bêbado que procurava comida na geladeira nova.

“Porra! Essa zona toda aqui e tem uma mulher dormindo lá dentro”, ainda comentou o bêbado, antes de levar um empurrão mais agressivo.

“É o vegetal”, esclareceu Neivinha, uma menina de dez anos, da rua ao lado.

Antes de voltar à filha imóvel e de especular sobre aqueles sonhos lindos que ela estaria desfrutando, dona Larissa ainda atendeu dona Júlia, proprietária de um salão de belezas ali perto, que gostaria de tocar, apenas tocar a menina adormecida, além de fazer uma oração para o seu despertar.

“Eu deixo, dona Júlia. Mas, por que mexer nela?”

“A senhora não entendeu, dona Larissa? Ela dormiu para lhe dar sorte. Vou confessar pra senhora: nunca vi um fogão de tantas bocas, assim, pessoalmente. Mas eu estou precisando, também, de algumas coisas. Sei que pedindo para ela serei atendida. Acho que esse sono dela faz uma ligação direta com os Santos Anjos.”

Dona Larissa agradeceu, esperou ali ao lado que dona Júlia completasse seu pedido e, quando ela saiu, dirigiu-se à filha adormecida, acariciando-lhe a testa imóvel. Toninha não mudou a serena expressão do rosto, própria de quem viaja através dos tais sonhos indescritíveis.

“Eu queria lhe agradecer, minha filha, por todos esses presentes”, disse dona Larissa, “mas eu trocaria tudo, tudo, pelo presente maior que é ver você acordada”.

Tirou o lenço grande do bolso e, como não havia ninguém por perto, assoou o nariz.

* Caricatura de Sérgio Gomes

1 comentário

Arquivado em Outros poetas

Clarice Lispector, minha

São três horas da manhã. Há cerca de meia hora tive um impulso: precisava fazer café. Foi inescrutável. Meu corpo e meu cérebro clamavam por café. Senti-lo entrar nas células e tornar o planeta mais inteligente. Café faz isso comigo. Sinto-me muito mais atenta às nuances cotidianas do viver.

Não demorou para compreender quem realmente pedia café. Era você. Era você que me obrigava a sentar agora e vociferar o que eu ainda não sei exatamente. É seu aniversário e seu direito. Já bebi tanto das suas palavras!

Começo pelo que mais me perturba, antes de elogiar. Pois prefiro as más notícias, primeiro. Será que consigo também é assim?

Irrita-me profundamente o fato de você não saber ser escritora. Juro, muitas vezes pensei que apenas um fingimento muito bem ensaiado era capaz de aveludar tamanha modéstia.  Depois, lendo, relendo, decifrando, enervo-me mais. Você está sendo sincera e tímida ao assumir que escrever é maldição.

Tenho inveja da sua máquina de escrever. Queria tanto esfolar meus dedos entre as teclas, sangrá-los em versos. Rasgar o papel. Passar a limpo. Rabiscar com a grafia menor margens, esquinas de frase. Ver nascer epifanias translúcidas em um fim de tarde nublado. A escrita virtual não é meramente mais sóbria. É mais comedida, mais burocrática. Deslustre.

Contudo, posso ofertar-lhe alguns ensinamentos que absorvi. Você é a minha grande vereda literária. E eu tenho imensos ciúmes da sua popularidade entre as pessoas. Detesto ver seu lirismo aprisionado à saliva de outros leitores. Não suporto conceber que há outros livros por aí, que não seja o meu “A Descoberta do Mundo” – embora tenha absoluta convicção de que não há outro tão surrado, tão vivido e tão amado como o meu. Em frangalhos de tanto uso.

Eu fui salva e submersa por sua loucura. O mundo pode me agasalhar, só porque existiu a sua poesia nas minhas mãos. Certa vez, indignada com a genialidade do “apurar a pureza”, peguei um giz branco – porque a pureza é inexorável giz e inevitavelmente branca – e escrevi na lousa: apurar a pureza clandestina. Isso virou título de texto meu. Mas você, naquele minúsculo parágrafo, na página perdida no meio do livro, você evitou a minha morte. E não conto o porquê, ficará eternamente guardado nas entrelinhas.

Fico feliz que você tenha morrido. As pessoas escrevem muito mal, amada Clarice. Hoje, todos se sentem dignos de autoria. Quando a leio – enganando a mim: somente eu a possuo – penso sempre nisso. Ainda bem que o universo a impediu de presenciar os horrores pseudoliterários que nos cercam.

Muito obrigada por compartilhar seus pecados comigo. E por ter escrito a maior história de suspense de todos os tempos: “A princesa – Noveleta”.

Agradeço-lhe também por desengradar os pudores e as muralhas do pensamento. Pelo exaspero em devorar detalhes. A maestria em repetir as mesmas palavras, dando-lhes infindáveis possibilidades. Pela vida às mesquinhezes austeras. Você transfez meu estrabismo em envernizada visão periférica.

Minha alma também teve problemas com enxertos. E a sua poderosa literatura foi alicerce para encerrar as rejeições. Ao mesmo tempo, quantas peles me foram arrancadas dos lábios, graças a você?

No entanto, houve um grande incômodo no nosso encontro. Quando a vi na televisão fiquei mortalmente compadecida da sua fragilidade. Desliguei a lembrança. A sua voz, Clarice, reside única dentro dos meus olhos e não posso ferir minha imaginação com a realidade.

4 Comentários

Arquivado em Textos meus

Sobre cata-ventos


Estou farta da escrita rebuscada. Alheia às difíceis palavras adultas, às jornadas maduras, à literatura anciã. Eu só quero, esta noite, estar no colo de uma poesia criança que ensope os devaneios em simplicidade.

Luto árdua e diariamente contra tudo o que carregue etiquetas. Muitas vezes a batalha é desleal, posto que creio no efeito das dificuldades. Só que agora me dei conta – porque sou uma pessoa perlongada – de que nada vale poeticamente senão em nudez absoluta. A sabedoria é crudívora.

A poesia verdadeira mora em minha casa de bonecas. Seus versos miudinhos têm dedos curtos demais para acertar uma trança em simetria. No entanto, ela alcança com precisão os nós dos cadarços coloridos.

Suas estrofes são floreadas por estalos, brotos de maria-sem-vergonha. Têm olhos descerrados, rebentos. Como se a inocência tivesse sido violada por outonais crepúsculos. E, ao mesmo tempo, está acorrentada à dor infante da eternidade. 

Ela anda a embebedar-me em longínquas viagens pelo chão do quarto. Para meu espanto de gente grande, não há silêncio ou solidão que a incomode. São, ao contrário, parte dos cenários, eixo dos castelos, essência dos bichos inventados. Porque não é trânsfuga da sua condição. Esses medos não habitam os hemisférios pueris. Brincar desacompanhado é cata-vento. Só é preciso um sopro para existir vida.    

Procuro perscrutar o que a poesia menina balbucia. E ela não responde mas açucara as minhas imagens. Depois, exausta de perder-se em bosques intransponíveis, adormece. Prefere dormir com o estrepitar da chuva. Não pela obviedade do ninar – essa melodia lugar comum – mas porque sabe que na chuva há companhia para atravessar os escuros.

Vejo-a resfolegar o mundo onírico. Descubro sua pele. Ela está repleta de machucados azuis. Aqueles que se aperta com prazer para recordar que algumas dores são doces. E que, passado um segundo, não doem mais.

Tento tocá-la. Imediatamente esquivo-me. Sinto-me desguarnecida. A meninice poética assusta mais do que o espectro do envelhecer. Assim, ela escorrega de mim em cambalhotas e carrosséis. Eu aceito sem questionar. Pois sei. O dia em que meu escrever atravessar o oráculo da infância, estarei pronta para deixá-lo. 

1 comentário

Arquivado em Textos meus

Minha verdadeira musa

Já confessei, outrora, que a minha paixão pelas poesias começou com os velhos cadernos encapados de minha mãe. Quantos poemas eu não roubei daquelas páginas! E hoje ainda sonho em ter um milésimo dessa intimidade. De presenciar ao menos um encontro, como os dela com as palavras…

O Hóspede – Miriam Portela

Mora em minha casa

um poeta louco

cansado de seus excessos.

Nos seus desvarios

ele me fala de aventuras e de sonhos.

Nos momentos de lucidez

descreve territórios e pátrias

em que já viveu.

Mora em minha casa

um poeta velho

exausto de eternidade.

Na sua loucura mansa

cultiva canteiros

de girassóis e miosótis

que esmaga com fúria nos momentos de dor.

e toda luz o cega

fazendo-o chorar lágrimas excessivamente salgadas. 

De vez em quando

ele me toma nos braços

e dançamos noites seguidas:

ele embriagado pelos escuros

e eu fascinada por sua embriaguez.

Mora em minha casa

um poeta rude

que grita impropérios e

rasga com suas unhas sujas de terra

os versos recém nascidos.

 

De vez em quando

em suas mãos crestadas pelo sol

ele me oferta o gosto do sal

trazido do mar do norte

e em sua pele áspera

cortada pelos ventos gélidos do ártico

desenha rios e fiordes.

mora em minha casa

um poeta triste

como um menino órfão

a exigir carícias

a cobrar afetos

tantos

Vive em mim

um poeta

e eu o protejo.

3 Comentários

Arquivado em Outros poetas

Míope é a vida!

Um lindo poema da Adélia Prado, interpretado pelo Mané do Café. E, incidental ou não, uma homenagem à minha mãe!

1 comentário

Arquivado em Vídeos Tejo Bar

Sonhos não envelhecem…

E no meio de tanta tristeza que aterrorizou a sua segunda-feira, você lembrou de mim. Meus sonhos, ao seu lado, não envelhecem…

Deixe um comentário

Arquivado em Outros poetas