Fernando Portela
“Ela agora é um vegetal.”
Foi assim que dona Larissa, de volta do hospital, definiu Toninha, sua própria filha, às vizinhas reunidas na sua casa. Havia um clima de velório, ali, e as crianças estavam muito confusas com aquela história. Dona Larissa ficou com vergonha de confessar que esquecera o nome da doença de Toninha e preferiu dizer que nem os médicos sabiam.
“Ela voltará a si?”
“Pode voltar, pode não voltar. Pode ficar assim por uma semana e morrer. Pode ficar assim para o resto da vida.”
Uma semana depois, quando Toninha retornou a casa, de ambulância e de maca, as crianças suspiraram: o “vegetal” era a mesma Toninha de sempre, meio criançona apesar dos vinte e dois anos, e que gostava de se vestir de bruxa para perseguir a molecada da rua. Era uma farra. Agora, como iria dormir sem hora para acordar, a brincadeira ficara adiada, sabe-se lá até quando. Aquele pessoal com menos de onze anos sentiu muito.
Mas nem se passaram cinco dias, quando o povo, ainda chocado, viu dona Larissa, sempre com um enorme lenço de choro no bolso, receber o caminhão da “Sorte é pra quem pode”, promoção das Lojas Sol. O veículo ocupava metade da rua, que era meio torta, com muitos problemas no calçamento e poucas árvores, e estacionara em frente à pequena casa.
“Dona Larissa! Dona Larissa!”, gritou um palhaço, acompanhado de uma câmara de televisão, “a senhora ganhou a troca de todos os seus móveis e aparelhos domésticos! A sorte é pra quem pode!”
Uma pequena multidão se acercou da casinha, e dona Larissa, cujo marido havia se engraçado por outra, e que vivia de produzir bolos e doces, já não conseguia controlar o choro e o riso, que agora vinham intercalados. As vizinhas, eufóricas, confluíram rapidamente. Ela, no centro das atenções, não largava o lenço grande, orientando a equipe de carregadores a acomodar os móveis novos, belíssimos, e a retirar os antigos, lamentáveis.
Na confusão, um dos carregadores lhe pediu para acordar a mocinha lá dentro, a fim de trocar a cama, e aí dona Larissa caiu num choro mais dramático, correu até Toninha, beijou-a muitas vezes no rosto.
“Ela não acorda mais, senhor. Come, faz necessidades, tudo, tudo, sem sair da cama. Mas, de vez em quando, chora. Eu fico preocupada: será que ela está vendo o que acontece aqui?”
O homem, muito impressionado, disse que seguramente não. Mas, com certeza, e até pra compensar sua situação, ela estaria desfrutando dos mais lindos sonhos que um ser humano poderia ter.
“O senhor acha mesmo?”
“Tenho certeza, dona. Conheci uma pessoa assim que, quando acordou, contou os sonhos que teve. Eram, assim, coisas impossíveis de descrever, de tão bonitas. Eu mesmo achei que valeria a pena dormir daquele jeito”, insistiu o homem, com um hálito de cerveja recente.
“Será?” Dona Larissa guardou o lenço grande, já imaginando uma forma de acomodar a filha na cama nova.
Dona Cléssia, da casa da frente, veio dar um abraço na amiga e lhe garantir que a sorte, de fato, não é pra quem pode, mas pra quem merece.
“Depois de Cristo, a pessoa que mais sofreu foi você, Larissa”, ela garantiu, acomodando no ombro a cabeça da amiga. “Você merece todos esses móveis lindos, e essa geladeira, você viu?, é enorme, de duas portas…”
“Vai ter de ficar na sala, porque na cozinha não cabe”, lamentou dona Larissa. “A televisão é muito grande também, mas entrou no quarto. Se eu usasse uma cama de casal, como antigamente, não daria.”
“Os móveis velhos vão ser um problema, não, minha amiga? O pessoal do caminhão vai levar?”
“Eles vão me indenizar, é um bom dinheiro, faz parte da promoção…”
“Meu Deus, mas que sortuda!” Dona Cléssia aproximou os lábios do ouvido de dona Larissa. “Será que é por causa da doentinha, essa sorte?”
“Não sei, não pensei nisso…”
O palhaço, que acabara de distribuir balas e balões coloridos às crianças que iam aparecendo, veio chamar “a dona da sorte” para dar uma grande entrevista, falando da felicidade que as Lojas Sol lhe haviam proporcionado.
“Não precisa falar da moça com problemas”, disse o palhaço. “Só coisa boa, coisa boa! E meta esse lenção no bolso!”
Ela falou, do jeito que lhe disseram, mas não foi possível demonstrar toda a alegria que eles queriam. A entrevista acabou suspensa porque dona Larissa percebera que uma pessoa estranha entrara na casa. Ela gritou, dando o alarme. Os carregadores ajudaram a tirar, lá de dentro, um bêbado que procurava comida na geladeira nova.
“Porra! Essa zona toda aqui e tem uma mulher dormindo lá dentro”, ainda comentou o bêbado, antes de levar um empurrão mais agressivo.
“É o vegetal”, esclareceu Neivinha, uma menina de dez anos, da rua ao lado.
Antes de voltar à filha imóvel e de especular sobre aqueles sonhos lindos que ela estaria desfrutando, dona Larissa ainda atendeu dona Júlia, proprietária de um salão de belezas ali perto, que gostaria de tocar, apenas tocar a menina adormecida, além de fazer uma oração para o seu despertar.
“Eu deixo, dona Júlia. Mas, por que mexer nela?”
“A senhora não entendeu, dona Larissa? Ela dormiu para lhe dar sorte. Vou confessar pra senhora: nunca vi um fogão de tantas bocas, assim, pessoalmente. Mas eu estou precisando, também, de algumas coisas. Sei que pedindo para ela serei atendida. Acho que esse sono dela faz uma ligação direta com os Santos Anjos.”
Dona Larissa agradeceu, esperou ali ao lado que dona Júlia completasse seu pedido e, quando ela saiu, dirigiu-se à filha adormecida, acariciando-lhe a testa imóvel. Toninha não mudou a serena expressão do rosto, própria de quem viaja através dos tais sonhos indescritíveis.
“Eu queria lhe agradecer, minha filha, por todos esses presentes”, disse dona Larissa, “mas eu trocaria tudo, tudo, pelo presente maior que é ver você acordada”.
Tirou o lenço grande do bolso e, como não havia ninguém por perto, assoou o nariz.
* Caricatura de Sérgio Gomes